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Nobel de Literatura premia Annie Ernaux, francesa que revolucionou a autoficção

Escritora que analisa sua vida em obras como 'Os Anos' e 'O Lugar' é consagrada no maior prêmio literário do mundo

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São Paulo

A vencedora do prêmio Nobel de Literatura deste ano foi a francesa Annie Ernaux, de 82 anos, cuja leitura vem sendo alavancada por obras cada vez mais populares como "O Lugar", "Os Anos" e "O Acontecimento".

A editora Fósforo publica os livros da autora no Brasil desde o ano passado e a trará ao país como a maior presença confirmada na Festa Literária Internacional de Paraty, no próximo mês.

A escritora Annie Ernaux - AFP

Ernaux é considerada uma pioneira no estilo da autoficção, tipo de literatura que se espraia cada vez mais pelo mundo e agora é consagrado pelo Nobel.

Seus livros contam histórias autobiográficas ao mesmo tempo em que refletem sobre o contexto social em que foram vividas —Ernaux era filha de um comerciante pobre na região rural da França e saiu de casa para estudar letras e se formar professora na Universidade de Rouen— e sobre o próprio processo de vasculhar suas memórias.

São obras que ficam num limiar entre a ficção e o relato documental, investigando até onde as lembranças são meios confiáveis de narrativa —o quanto elas podem trair seus autores ou fazê-los escorregar em vieses.

No discurso que anunciou a decisão, a Academia Sueca citou uma das mais famosas autodefinições da escritora, que costuma dizer que, em vez de autora de ficção, é uma "etnóloga de si mesma", celebrando sua capacidade de misturar experiências pessoais e coletivas.

A instituição louvou a "coragem e acuidade clínica pela qual desvenda as raízes, as estranhezas e constrangimentos coletivos ligados à memória pessoal".

A estreia de Ernaux nas prateleiras do país foi com "Paixão Simples", editado pela Objetiva nos anos 1990. Em 2019, a Três Estrelas trouxe "Os Anos", livro de maior abrangência e repercussão publicado até aqui por uma autora que preza pela concisão.

A obra voltou às lojas com a abertura da Fósforo —a francesa integrou a primeira leva de publicações da então editora estreante—, que trouxe "O Lugar" quase em simultâneo e, este ano, também publicou "O Acontecimento" e "A Vergonha".

Antes da Flip, planeja lançar também "O Jovem", livro mais recente da autora, em que ela narra um caso com um homem 30 anos mais novo.

"Ernaux já vivia um momento muito bom no exterior quando a compramos", diz a editora Rita Mattar, sócia de Fernanda Diamant na Fósforo e responsável por publicar a francesa nas duas últimas editoras. "Li por indicação de outros editores estrangeiros e senti que falava à sensibilidade brasileira, sobre a ascensão social por meio do estudo."

O palpite de Mattar se confirmou "razoavelmente cedo", segundo ela, que já vendeu quase 20 mil exemplares de livros físicos e virtuais da autora —o mais popular até agora é "O Lugar". O plano da Fósforo é publicar a obra completa de Ernaux nos próximos anos.

"É uma linguagem pouco sentimental, mas o conteúdo emociona muito as pessoas, que se comovem e viram fãs. Querem ir atrás de outro livro e depois outro, com vontade de falar das próprias experiências."

"O Acontecimento" também repercutiu como obra cinematográfica. A adaptação dirigida pela francesa Audrey Diwan foi premiada com o Leão de Ouro no Festival de Veneza e passou nos cinemas brasileiros em junho, a partir do Festival Varilux.

O livro remexe em tabus sem fazer concessões, ao narrar um aborto ilegal realizado pela escritora quando era uma jovem universitária. A obra escancara o abandono sentido por uma garota que enfrenta sozinha um dos processos mais difíceis de sua vida e entrelaça com destreza o misto de culpa e libertação envolvido na decisão de abortar.

A Mostra de Cinema de São Paulo também está prestes a apresentar outra vertente da autoficção de Ernaux, desta vez como cineasta. O documentário "Os Anos Super 8", que ela dirigiu ao lado do filho David e foi exibido no Festival de Cannes, terá estreia oficial no país no evento, que ocorre ainda este mês.

O portais de apostas ao Nobel mostravam, nos últimos dias, um panorama com os suspeitos de sempre, como o queniano Ngugi wa Thiong'o, a canadense Anne Carson, o japonês Haruki Murakami, o francês Michel Houellebecq e o anglo-indiano Salman Rushdie.

Outros nomes que vinham ascendendo eram o da guadalupense Maryse Condé e da americana Jamaica Kincaid. Uma destas duas, caso escolhida, seria apenas a segunda mulher negra na história a vencer o prêmio, após a conquista de Toni Morrison em 1993.

Ernaux é a 17ª mulher premiada em mais de 120 anos de Nobel de Literatura —e a primeira francesa a vencer o prêmio, que esnobou autoras centrais do século 20 como Marguerite Duras e Simone de Beauvoir mesmo abrindo espaço para 14 homens do país, o mais lembrado na premiação.

Os últimos anos foram marcados por surpresas nas escolhas do comitê sueco, que vinha selecionando nomes que não eram aventados por quase ninguém e que tinham pouca projeção no Brasil. A coisa muda de figura agora com Ernaux.

O tanzaniano Abdulrazak Gurnah, um expoente da literatura pós-colonial que começou a ser publicado no país no primeiro semestre deste ano com "Sobrevidas" na Companhia das Letras, era um completo desconhecido por aqui até então.

Em 2020, a poeta americana Louise Glück, também nunca editada por estas terras antes do Nobel, foi a encarregada de desbancar os favoritos da vez. Desde então a mesma editora publicou uma antologia robusta e o livro mais recente da escritora.

A escolhas desses autores menos polêmicos encerraram anos atribulados para a Academia Sueca, que viu um escândalo de assédio sexual derrubar membros de seus quadros, culminando na suspensão do prêmio em 2018. Em compensação, no ano seguinte foram eleitos dois vencedores, a polonesa Olga Tokarczuk e o austríaco Peter Handke.

A Academia seleciona desde 1901 o vencedor do Nobel de Literatura, numa iniciativa que, no começo, era um meio de promover a cultura escandinava —com algumas interrupções, o prêmio já laureou 119 pessoas. Hoje o escolhido ganha uma bolada de 10 milhões de coroas suecas, ou pouco menos de R$ 5 milhões.

Veja todos os vencedores do Nobel de Literatura até hoje

2022: Annie Ernaux (França)
2021: Abdulrazak Gurnah (Tanzânia)
2020: Louise Glück (EUA)
2019: Peter Handke (Áustria)
2018: Olga Tokarczuk (Polônia)
2017: Kazuo Ishiguro (Reino Unido)
2016: Bob Dylan (EUA)
2015: Svetlana Aleksiévitch (Bielorrússia)
2014: Patrick Modiano (França)
2013: Alice Munro (Canadá)
2012: Mo Yan (China)
2011: Tomas Tranströmer (Suécia)
2010: Mario Vargas Llosa (Peru)
2009: Herta Müller (Romênia-Alemanha)
2008: Le Clézio (França)
2007: Doris Lessing (Reino Unido, mas nasceu no Irã e cresceu no Zimbábue)
2006: Orhan Pamuk (Turquia)
2005: Harold Pinter (Reino Unido)
2004: Elfriede Jelinek (nasceu na Áustria)
2003: J.M. Coetzee (África do Sul)
2002: Imre Kertész (Hungria)
2001: V.S. Naipaul (nasceu em Trinidad e Tobago, mas vive no Reino Unido)
2000: Gao Xingjian (China)
1999: Günter Grass (Alemanha)
1998: José Saramago (Portugal)
1997: Dario Fo (Itália)
1996: Wislawa Szymborska (Polônia)
1995: Seamus Heaney (Irlanda)
1994: Kenzaburo Oe (Japão)
1993: Toni Morrison (Estados Unidos)
1992: Derek Walcott (Santa Lúcia, ilha do Caribe)
1991: Nadine Gordimer (África do Sul)
1990: Octavio Paz (México)
1989: Camilo Jose Cela (Espanha)
1988: Naguib Mahfouz (Egito)
1987: Joseph Brodsky (EUA, de origem russa)
1986: Wole Soyinka (Nigéria)
1985: Claude Simon (França)
1984: Jaroslav Seifert (Tchecoslováquia)
1983: William Golding (Reino Unido)
1982: Gabriel García Márquez (Colômbia)
1981: Elias Canetti (Reino Unido, de origem búlgara)
1980: Czeslaw Milosz (Polônia)
1979: Odysseus Elytis (Grécia)
1978: Isaac Bashevis Singer (EUA, de origem polonesa)
1977: Vicente Aleixandre (Espanha)
1976: Saul Bellow (EUA)
1975: Eugenio Montale (Itália)
1974: Eyvind Johnson (Suécia) e Harry Martinson (Suécia)
1973: Patrick White (Austrália)
1972: Heinrich Böll (Alemanha)
1971: Pablo Neruda (Chile)
1970: Alexander Soljenítsin (URSS)
1969: Samuel Beckett (Irlanda)
1968: Yasunari Kawabata (Japão)
1967: Miguel Ángel Asturias (Guatemala)
1966: Samuel José Agnon (Israel) e Nelly Sachs (Alemanha)
1965: Mikhail Sholokhov (URSS)
1964: Jean-Paul Sartre (França; recusou o prêmio)
1963: Giórgos Seféris (Grécia)
1962: John Steinbeck (EUA)
1961: Ivo Andric (Iugoslávia)
1960: Saint-John Perse (França)
1959: Salvatore Quasimodo (Itália)
1958: Boris Pasternak (URSS; renunciou ao prêmio)
1957: Albert Camus (França)
1956: Juan Ramón Jiménez (Espanha)
1955: Halldór Kiljan Laxness (Islândia)
1954: Ernest Hemingway (Estados Unidos)
1953: Winston Churchill (Reino Unido)
1952: François Mauriac (França)
1951: Par Lagerkvist (Suécia)
1950: Bertrand Russell (Reino Unido)
1949: William Faulkner (EUA)
1948: T. S. Elliot (Reino Unido, nascido nos EUA)
1947: André Gide (França)
1946: Hermann Hesse (Alemanha)
1945: Gabriela Mistral (Chile)
1944: Johannes V. Jensen (Dinamarca)
1940-1943: não foi concedido
1939: Frans Eemil Sillanpää (Finlândia)
1938: Pearl Buck (EUA)
1937: Roger Martin du Gard (França)
1936: Eugene O'Neill (EUA)
1935: não foi concedido
1934: Luigi Pirandello (Itália)
1933: Ivan Bunin (URSS)
1932: John Galsworthy (Reino Unido)
1931: Erik Axel Karlfeldt (Suécia)
1930: Sinclair Lewis (EUA)
1929: Thomas Mann (Alemanha)
1928: Sigrid Undset (Noruega)
1927: Henri Bergson (França)
1926: Grazia Deledda (Itália)
1925: George Bernard Shaw (Irlanda)
1924: Wladyslaw Reymont (Polônia)
1923: W.B. Yeats (Irlanda)
1922: Jacinto Benavente (Espanha)
1921: Anatole France (França)
1920: Knut Hamsun (Noruega)
1919: Carl Spitteler (Suíça)
1918: Não foi concedido
1917: Karl Gjellerup e Henrik Pontoppidan (ambos da Dinamarca)
1916: Verner von Heidenstam (Suécia)
1915: Romain Rolland (França)
1914: não foi concedido
1913: R. Tagore (Índia)
1912: Gerhart Hauptmann (Alemanha)
1911: M. Maeterlinck (Bélgica)
1910: Paul Heyse (Alemanha)
1909: Selma Lagerlöf (Suécia)
1908: Rudolf Eucken (Alemanha)
1907: Rudyard Kipling (Reino Unido, mas nasceu na Índia)
1906:Giosuè Carducci (Itália)
1905: Henryk Sienkiewicz (Polônia)
1904: Frédéric Mistral (França) e José Echegaray (Espanha)
1903: Bjornstjerne Bjornson (Noruega)
1902: Theodor Mommsen (Alemanha)
1901: Sully Prudhomme (França)

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior da reportagem afirmava que "Os Anos" foi a estreia de Annie Ernaux no Brasil, quando na verdade foi "Paixão Simples", lançado pela editora Objetiva em 1994.

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