Exposição com fotos de imigrantes africanos em SP escancara racismo brasileiro

'África em São Paulo', no Museu da Imigração, reúne relatos de pessoas de 21 países e teve origem em reportagem da Folha

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São Paulo

Terminado o genocídio em Ruanda, as tensões políticas se espalharam pelo continente africano, no prenúncio de mais uma crise humanitária, a Segunda Guerra do Congo. Em agosto de 1998, o maior conflito da história moderna daquele continente foi deflagrado, com a invasão ruandense ao nordeste do país vizinho para apoiar uma rebelião da etnia tutsi.

Negro de 42 anos, olhar sério, usa cabeça raspada, está com os braços envolvendo sua cabeça inclinada. Ele não usa camisa. A foto é branco e preta
Retrato de Vensam Lala, que nasceu na Guiné-Bissau em 1980 e veio para o Brasil em 2010 - Bob Wolfenson

Desde então, aquele território foi tomado por uma sucessão de conflitos entre etnias e 25 grupos paramilitares, que envolveu oito países e levou à morte de quase quatro milhões de pessoas. Até hoje, a guerra não se resolveu por completo, e suas consequências ainda provocam um fluxo de refugiados, inclusive para o Brasil.

Robert Djunga desembarcou em São Paulo em 2014. Doze anos antes, ele havia perdido o pai e a mãe, assassinada a golpes de facão. Sob ameaça crescente de milícias, deixou a mulher e sete filhos na República Democrática do Congo, reerguendo sua vida na capital paulista, onde trabalha vendendo artigos esportivos.

Ele é um dos 43 personagens retratados na exposição "África em São Paulo", agora no Museu da Imigração. A mostra foi concebida pelo jornalista Naief Haddad, repórter especial da Folha, em parceria com o fotógrafo Bob Wolfenson, ao cabo de um projeto de cinco anos. Ao todo, as fotos percorrem 21 países do continente.

A ideia surgiu a partir de uma reportagem assinada pela dupla em 2018, parte do projeto "E Agora, Brasil", publicado neste mesmo jornal, sobre o desemprego no centro da cidade, onde havia uma concentração de imigrantes africanos.

"Em comum a todas essas pessoas está o racismo, que muitos conheceram pela primeira vez quando chegaram ao Brasil", diz Haddad, que entrevistou os imigrantes para escrever os textos da mostra. "O tipo dessa imigração é bem peculiar, ela é um resultado de circunstâncias contemporâneas, de guerras em andamento, perseguições políticas ou até do desejo de fazer um mestrado."

Se a valorização da ancestralidade provocou debates em livros, filmes e mostras sobre a diáspora africana até o Brasil Colônia, "África em São Paulo" ilumina o momento presente, ressaltando a diversidade de histórias que a atualidade oferece.

O angolano João Pedro Canda, por exemplo, resolveu se mudar para o Brasil, porque queria realizar o sonho de ser escritor. Em São Paulo há nove anos, já lançou sete livros e dirige o Instituto Literáfrica. Para as lentes de Wolfenson, ele posou com fleuma de intelectual, portando um lenço com motivos tropicais, numa foto em preto e branco.

"Fizemos um trabalho enaltecedor dessas pessoas, com fotos de estúdio ou indo até elas, sem um apelo narrativo", afirma Wolfenson. "Esteticamente, o mais importante são as roupas, que em alguns casos trazem toda a simbologia de culturas africanas."

Desse modo, a mostra explora a natureza dupla da fotografia, ou seja, mescla os registros documental e artístico. Não por acaso, Wolfenson conta ter se aproximado ainda mais do fotojornalismo, trabalhando em parceria com um repórter.

Acostumado a fotografar artistas e políticos, ele afirma que registrar anônimos é mais simples, porque não é preciso buscar tanta originalidade, como ocorre com pessoas muito fotografadas. Mas há exceções.

Foi um desafio registrar e entrevistar Isabelle Djenoyom, que nasceu em 1978 no interior do Chade e veio morar no Brasil em 2016. Ela vivia numa colônia agrícola com os pais e os nove irmãos. Num díptico, ela aparece com tez serena. De um lado, veste um traje branco e cruza os braços. Do outro, fecha as mãos, com o traje agora todo colorido.

Antes de completar a maioridade, Djenoyom ingressou na Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição e viajou por diversos países —Camarões, onde se tornou freira, e Nicarágua. No Brasil, ela se divide entre a faculdade de enfermagem e a rotina na capela Santa Paulina, no Ipiranga.

Em alguns casos, Wolfenson empregou técnicas usadas para registrar artistas em revistas ilustradas. O exemplo mais nítido é de Vensam IaIa, de Guiné-Bissau, que chegou ao Brasil em 2010 e agora trabalha como modelo.

"Eu me descobri negro no Brasil", ele disse para o texto da mostra. "Vim de uma sociedade em que não existe racismo estrutural, como aqui. Como a maioria da população é negra, essa não era uma questão para mim."

África em São Paulo

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