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Leila Danziger transita entre poesia e colagem em elogio ao fragmento

Em livros e mostras, artista tematiza a temporalidade e verdade com linguagem descontinuada, própria da modernidade

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São Paulo

O que a espessura do papel esconde o reflexo revela por imagens infinitas. A mesma fotografia não se completa em nenhum dos três espelhos justapostos na parede. Cada um deles traz em si apenas dois ou três recortes da impressão.

A criança da foto só existe quando o espectador encara os três espelhos. Só então a menina se revela sorridente, pronta para pular Carnaval. A série "Bailinho" integra a mostra "Descer da Nuvem", da carioca Leila Danziger, agora no Museu Judaico de São Paulo. Para criar as obras da exposição, a poeta e artista plástica pesquisou, no Centro de Memória do museu, fotos, livros e documentos sobre a imigração judaica no país.

'Descer da Nuvem', colagem incluída na mostra de mesmo nome, agora no Museu Judaico - Wilton Montenegro

"Bailinho", composta este ano, se encerra em três instâncias. A primeira delas corresponde a cada espelho, por onde o espectador enfrenta a própria imagem, entrevendo fragmentos da pequena foliã. A segunda se dá mediante a totalidade da série, que indica a quem pertence a imagem —uma garota judia, aclimatada à principal festa popular do Brasil. Já a terceira se refere à mistura temporal que a obra agrega—o passado (a menina) e o presente (o reflexo do espectador).

Em sua pesquisa arquivística, Danziger desperta a consciência de um passado remoto, sem estabelecer idealizações a priori. O tempo, no entanto, se torna matéria, em papéis amarelados e em recortes em preto e branco.

"O fragmento é a fulguração do sentido entre dois abismos", dizia o poeta italiano Giuseppe Ungaretti, quando lecionou nos anos 1930 na Universidade de São Paulo, a USP. Para ele, a linguagem fragmentada seria a única solução para a arte contemporânea, tal como indicado pela vivência na cidade moderna. Ungaretti pensava que o fragmento guardava em si toda a expressão da obra de arte, sendo limitado pelo não dito, o antes e o depois —os dois abismos.

Do mesmo modo, não se sabe o nome daquela menina e tampouco é possível desvendar sua história. A imagem, porém, tem expressividade autônoma, porque nela o espectador se filia para atribuir sentido à obra. Não por acaso, Danziger encontra a linguagem fragmentada na colagem, técnica que se enobreceu no movimento cubista.

Por engendrar infinitas combinações, os elementos díspares da colagem, encontrados na vivência cotidiana, se comunicam num contexto próprio, gerando uma obra de arte única. O resultado se exemplifica nas duas composições da série "Lar". Nelas, a artista colou envelopes típicos da correspondência postal em duas fotos. Cada envelope contém cartões-postais, cartas, anotações e documentos de imigrantes encontrados no acervo do museu.

Uma foto exibe duas crianças subindo num parapeito. A outra mostra um quarto, com uma janela ao fundo, por onde o interior da residência se conecta à paisagem. Os envelopes reaparecem em "Descer da Nuvem", foto de um menino, rodeado por seus amigos, que corre num declive.

Mais uma vez se impõem os abismos do fragmento. Reafirmando a linguagem entrecortada, as cartas ali recolhidas não encontraram seus destinatários. Ao mesmo tempo, a expressividade das fotos é alcançada pelo desconhecimento da origem dos personagens retratados.

Numa outra sala da mostra, Danziger lembra que o fragmento também é uma expressão da violência. A série "Cineminha, Comunidade" traz imagens, em que a comunidade judaica aparece em momentos de lazer. Passado tanto tempo desde que as fotos foram feitas, o espectador de agora parece um intruso no tempo. A artista cobre as fotos com tinta vermelha, numa intervenção que evoca a violência sofrida pelos judeus ao longo da história.

No livro "Imagens Apesar de Tudo", o filósofo francês Georges Didi-Huberman defende a imagem como relato do trauma. A obra é o resultado de um estudo de quatro fotografias feitas por um grupo de judeus, em agosto de 1944, no crematório cinco do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau.

"Não invoquemos o inimaginável. Não nos protejamos dizendo que de qualquer forma não o podemos imaginar —o que é verdade—, já que não podemos imaginar inteiramente. Mas devemos imaginar, esse inimaginável tão pesado", diz um trecho do livro.

Didi-Huberman faz um elogio às imagens como único meio de acessar o trauma. O Holocausto tinha o objetivo de matar duas vezes os judeus. Era preciso tirar a vida daquelas pessoas e qualquer possibilidade de representação do momento histórico. As quatro fotografias examinadas no livro subverteram o poder nazista, numa disputa sobre a documentação do Holocausto. As imagens, portanto, nos dariam a memória.

Depois de publicar o livro, Didi-Huberman foi acusado de fetichizar a experiência judaica nos campos de concentração. Na imprensa francesa, artigos apontaram a suposta iconofilia do autor, que colecionava fotografias do sofrimento alheio.

Por ironia, imaginar, isto é, pensar por imagens, se tornou uma imposição do nosso tempo. Primeiro, pela descrença no poder da imaginação, uma característica do mundo romântico, depois pela banalização das imagens com o avanço tecnológico. Fotos, vídeos, séries e filmes estão presentes de tal forma no cotidiano, que a arte contemporânea, imersa na reprodutibilidade, questiona os limites entre imagem e verdade.

Didi-Huberman deflagrou a mesma dicotomia, também aplicada à série "Cineminha, Comunidade". A presença daquelas pessoas reunidas em restaurantes e teatros trazem a verdade — fulguração— sobre a chegada dos judeus ao Brasil.

"Contemplo a paisagem pelo visor de sua câmera —/ Mar Vermelho sobre praia Vermelha/ Tel Aviv sobre Copacabana", diz o poema "Pão de Açúcar", do livro "Ano Novo", publicado há seis anos pela artista. Aqui, existe a conquista de um novo território, explícito num procedimento de colagem. A preposição "sobre" cola, no segundo verso, o oceano Índico ao Atlântico, como se pertencessem a uma só paisagem.

No primeiro verso, o eu lírico apresenta a consciência de reproduzir a realidade pela técnica, incluindo a presença da câmera na visão do dia. No livro "C’Est Loin Bagdad [Fotogramas]", publicado em 2018, Danziger se apresenta como artista-poeta-cineasta. Em comum a todos os seus livros, está a ordenação dos poemas em um rigoroso eixo temático, provando rara coesão no cenário da poesia contemporânea.

No caso de "C’Est Loin Bagdad [Fotogramas]", Danziger se despede da cineasta francesa Valérie Brégaint, autora de um curta-metragem homônimo ao livro. Num arco fílmico, a elaboração do luto compreende o susto ocasionado pelo recebimento da notícia até a rememoração de episódios vivenciados pelas duas amigas.

"Visito seu perfil —/ novos abaixo-assinados/ tantas causas urgentes/ aguardam sua assinatura / que não está/ Recuo ao nosso tempo em comum", diz o quarto poema. Se nas artes plásticas Danziger elegeu o papel como principal suporte de trabalho, a tecnologia teima em aparecer em sua poesia. As redes sociais da amiga permanecem ativas, mesmo depois de seu desaparecimento, antes mesmo de completar 50 anos.

Como nas fotografias de arquivo, a temporalidade se apresenta como uma das primeiras inquietações da autora. Afinal, é na partilha do tempo que as relações sociais são construídas. Impresso numa edição artesanal, "C’Est Loin Bagdad" traz fotogramas em preto e branco, incluindo uma reprodução de uma postagem escrita por Brégaint, em setembro de 2010, no perfil de Danziger no Facebook.

A devoção da poeta pelas imagens resultou no livro "Cinelândia", de 2021. A coletânea foi gestada entre novembro de 2016, depois das eleições municipais, e concluída em outubro de 2020, às vésperas de novas eleições na cidade do Rio de Janeiro. Por óbvio, a linguagem fragmentada é própria do cinema, cuja narrativa opera em sua descontinuidade.

Assim, a leitura integral do livro sugere a ideia de movimento, porque o sentido de cada unidade poética se dá na sucessão dos poemas-imagens. Como em "C’Est Loin Bagdad" ou na série "Bailinho", as fotografias contidas no livro criam instâncias para a compreensão de "Cinelândia"

Se cada poema tem valor semântico particular, a união das composições cria a potência fílmica do livro. Algo semelhante ocorre em relação às fotos entre os poemas. As imagens legam ao leitor suas impressões, que passa a se questionar, ao término da leitura, se o objeto livro não é, ele próprio, uma obra plástica.

"Instalar uma imagem/ no ápice/ de outra imagem/ é uma definição de haicai/ ou de monumento." No poema, está contido o princípio da colagem, bem como a manifestação da arte poética da autora. Danziger vai até a Cinelândia, como é conhecida a região ao redor da praça Floriano Peixoto, no centro do Rio de Janeiro, e documenta o que se apresenta à sua visão, com um iPhone 6 Plus, objeto reproduzido na contracapa do livro.

A praça, que fica entre o Theatro Municipal e o Aterro do Flamengo, sempre foi um ponto de boemia e de manifestações de jovens de esquerda. "E se todos os panfletos,/ volantes, faixas, bandeiras/ se todos os impressos reunidos formassem uma fita de Möbius/ interminável/ que vai sendo cortada pela multidão?".

Danziger capta instantâneos, acontecimentos que se acumulam no cotidiano da praça, sempre repetindo nos poemas a palavra "Cinelândia". A região é assim chamada, porque nos anos 1920 abrigava os melhores cinemas da cidade —Cine Odeon, Pathé e Rex. Para a artista, "Cinelândia" guarda em si todo o conceito que alicerça sua obra, assim como a vida do habitante da metrópole. Ou seja, é possível encontrar Cinelândia fora da Cinelândia.

"Há Cinelândia em Copacabana/ quando em voz alta/ lembramos —/ Caruso Rian Cinema 1/ [nomes desfeitos/ em farmácias/ em Salas do Reino/ em Universais]", diz outro poema.

Dos letreiros de Copacabana às fotos do Google, as imagens produzem memória a cada instante e podem subverter o real, deixando de se parecer com algo, mas sendo só imagens —tudo o que nós temos, essa verdade corrompida.

Descer da Nuvem

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