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Livro póstumo, 'Noite no Paraíso' destaca talento único de Lucia Berlin

Coletânea de contos carrega visão de mundo da autora morta em 2004, incluindo o humor demolidor e personagens corajosos

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Noite no Paraíso

  • Preço R$ 74,90 (304 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Lucia Berlin
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Sonia Moreira

Em 2015, a publicação póstuma do soberbo "Manual da Faxineira" —com contos geniais que narravam as situações mais duras com humor e irreverência —tornaram o nome de Lucia Berlin mundialmente conhecido.

A escritora Lucia Berlin - Buddy Berlin/Divulgação

Berlin, que morreu em 2004, é sem dúvida uma das melhores contistas de língua inglesa. É difícil, no entanto, comparar seu repertório e seu estilo aos de qualquer outro autor, uma vez que sua escrita é o resultado não só de escolhas estéticas, mas de uma confluência de circunstâncias e acontecimentos particulares convertidos em literatura —a maternidade, os três divórcios, os diversos empregos, as temporadas em diferentes países, a difícil luta contra o alcoolismo.

Boa parte das resenhas dão mais peso ao indiscutível aspecto autobiográfico das narrativas de Berlin do que aos próprios contos. Além do mais, e de forma quase crua, Berlin transfere para suas narrativas algo que só posso chamar de visão de mundo. Há uma ausência de tragédia no trágico que torna os contos de "Manual da Faxineira" e deste "Noite no Paraíso" tão singulares.

Vale dizer que "Noite no Paraíso", assim como o anterior, faz lembrar um romance pós-moderno em que os eventos narrados não são lineares nem concatenados. A mãe divorciada às voltas com seus três filhos é quase onipresente; várias situações, com detalhes alterados e recombinados, se repetem em diferentes contos.

O que nunca muda é o desassombro incomum que marca a postura dos personagens de Berlin diante dos, digamos, percalços da vida. Quase nada lhes parece estranho. No conto "Andado: um romance gótico", Berlin descreve os filhos de pais — como diplomatas e militares — que se mudam com frequência. "O problema dessas crianças", escreve Berlin, "não é se sentirem isoladas nem serem sempre novas nos lugares, mas o fato de se adaptarem tão rápido e tão bem."

É justamente essa capacidade de adaptação que se vê nos personagens da autora, e que volta e meia de fato ameaça se tornar problemática. Haveria neles conformismo ou estoicismo, não fosse uma abertura incomparável para o deslumbramento. Das cerejeiras em flor às tranças de uma garotinha num ônibus, passando pelo som de "uma bola de tênis ou uma bola de golfe batida com precisão", tudo pode comover um personagem de Berlin.

Este mesmo conto —que é, aliás, um dos melhores do livro —se passa em uma quinta chilena e de fato tem algo da atmosfera de um romance gótico. Aqui é possível ou desejável assinalar que Berlin, filha de um engenheiro de minas, passou a adolescência no Chile e conhecia bem a língua e o lugar. O conto é um perfeito estranho no ninho: para narrar o malfadado desabrochar de uma adolescente estadunidense num país estrangeiro, Berlin usa desde uma intertextualidade com Turguêniev até as tensões políticas que agitavam o Chile. Além disso, o humor demolidor e irreverente que é marca registrada da autora está ausente aqui.

Esse mesmo humor — que às vezes se manifesta em uma simples escolha de palavras, e no qual a gravidade de uma situação ocasionalmente se dilui — não se perde nos demais contos. A excelente tradução de Sonia Moreira, que já havia vertido "Manual da faxineira" para o português, merece todos os elogios pela precisão com que captura, sem deixar a sonoridade de lado, essa voz única e desabusada de Berlin. Uma palmeira é "troncha", um uísque é "bom pra dedéu", as portas de algumas casas são "esbodegadas".

Várias narrativas dão conta do que só posso chamar de furdunço —palavra altamente compatível com o éthos de Berlin, que sabia narrar um furdunço como ninguém. Em um deles, uma mulher sobe no telhado na noite de Natal e se recusa a descer. Em outro, a merecida folga de uma mãe solo termina com um tremendo de um fuzuê. No conto que dá título ao livro, uma noite agitada em um bar mexicano acaba com um bafafá envolvendo a atriz Ava Gardner.

Como aponta Mark Berlin no prefácio do livro, "Mamãe escrevia histórias verdadeiras; não necessariamente autobiográficas, mas quase lá". No fundo, a verdade nos contos de Berlin reside acima de tudo nessa visão de mundo muito bem estabelecida: nessa abertura, senso de humor e desassombro tão valiosos.

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