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'Ao Paraíso', de Hanya Yanagihara, é catatau aquém de sua ambição

Autora de 'Uma Vida Pequena' mistura temporalidades em seu novo livro, sem desenvolver o contexto das épocas retratadas

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Ao Paraíso

  • Preço R$ 129,90 (720 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autor Hanya Yanagihara
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Ana Guadalupe

Depois do sucesso de "Uma Vida Pequena", eram grandes as expectativas em torno de "Ao Paraíso", outro calhamaço da escritora americana Hanya Yanagihara.

O romance se divide em três partes, que correspondem, de modo geral, aos anos de 1893, 1993 e 2093. Seria possível ler as três separadamente, uma vez que o que as une é bastante vago.

A escritora Hanya Yanagihara, autora de 'Uma Vida Pequena' e 'Ao Paraíso' - Divulgação

Há uma casa em Washington Square que resiste ao tempo. Há um punhado de nomes que se repetem, o que sugere menos uma hereditariedade e mais uma espécie de essencialismo. É como se os vários Davids e Charles compartilhassem as mesmas características, ainda que estejam imersos em circunstâncias e relações distintas.

Na primeira parte, numa alusão às turbulências da Guerra Civil, os Estados Unidos se dividem basicamente entre Estados Livres —o Leste—, Colônias —Sul— e o Oeste. Nos Estados Livres, onde uma pessoa pode se casar com quem bem entender, o ricaço e frágil David Bingham se apaixona por um jovem volúvel e possivelmente arrivista. David terá, então, de escolher entre ele e o homem com quem já está comprometido, o previsível Charles Griffith.

É clara a referência a Henry James e seu "A Herdeira". Ao contrário da condução de James, aqui a narrativa é deixada à deriva, constituindo uma sucessão de digressões e cenas repetitivas e anódinas. O próprio pano de fundo geopolítico resta em grande parte inexplorado.

A segunda parte é a mais interessante. Ela tem início em 1993, em Nova York, com David Bingham, um jovem de origem havaiana que namora um sujeito chamado Charles Griffith. É o auge da epidemia de Aids, e temas como as redes de apoio, o afeto e o cuidado são abordados com imensa delicadeza. A narrativa então recua até a década de 1970, e quem a assume é o pai de David, um homem inseguro que nunca se encaixou.

Os contextos socio-históricos, são pouco desenvolvidos —por mais essenciais que sejam para a trama, Yanagihara os mantêm à distância, fornecendo detalhes genéricos e pouco aprofundados. Como nas demais partes, tentativas de abordar classe e raça acabam perdidas em meio a dezenas de outros assuntos.

Também na terceira parte há duas linhas temporais. De um lado há a narrativa de uma jovem, Charlie, que tem de conviver com as sequelas debilitantes do uso de um remédio. De outro, num recuo no tempo, há a correspondência de Charles Griffith, avô de Charlie e cientista renomado, com um amigo.

A terceira parte é distópica. Os Estados Unidos têm um governo totalitário, não há imprensa, televisão, livros ou internet. Direitos há muito assegurados, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, foram revogados. Grupos insurgentes demonstram de forma violenta seu descontentamento com as medidas adotadas nos combates às sucessivas pandemias —e muitas dessas medidas foram implementadas pelo próprio Charles.

Quando se trata de retratar os vínculos humanos e os sentimentos complexos e nuançados que os constituem, Yanagihara é de fato excelente —eis a razão do sucesso de seu romance anterior. Na terceira parte, é a conexão entre avô e neta que ganha destaque —às custas, porém, do desenvolvimento mais pormenorizado de questões fundamentais envolvendo a atuação de Charles junto ao governo, uma vez que foram as tentativas de conter a propagação dos vírus que respaldaram a instauração do governo totalitário.

Em certo sentido, não há sutileza ou mesmo bom gosto na escolha de palavras. Charles é convocado a atuar como "arquiteto da solução", o que ecoa o papel do nazista Adolf Eichmann. Mas a solução de Charles parte, de forma razoável, do isolamento dos doentes. Ele, porém, diz saber "por experiência própria que o cuidado às vezes tem mais características de ditadura do que de amor".

"Ao Paraíso", que ganhou tradução impecável de Ana Guadalupe, não é de todo mau. É um projeto de fôlego, e a ambição de Yanagihara, aliada à sua capacidade de construir personagens e relações complexas, é louvável.

O que o enfraquece é seu ocasional andar em círculos, seu desvio de questões espinhosas e sua escolha indefensável de tratar circunstâncias decisivas como acessórias.

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