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Antonia Pellegrino e Manoela Miklos

MeToo transformou a compreensão do assédio, mas há muito a fazer

Cinco anos depois, movimento gerou paradigma onde mulheres ao redor do mundo relatam suas experiências de violência

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Antonia Pellegrino

Bacharel em ciências sociais, mestre em literatura pela PUC-Rio, roteirista premiada pela ABL e ABC

Manoela Miklos

Diretora-executiva do Instituto Brasil-Israel

Em 16 de outubro de 2017, a atriz americana Alyssa Milano retuitou um chamado para a ação: em suas redes, mulheres vítimas de assédio decidiram quebrar o silêncio e demandaram que ela fizesse o mesmo.

O post que a atriz compartilhou dizia: "Se todas as mulheres que foram assediadas ou agredidas sexualmente escrevessem 'eu também' em suas redes sociais, poderíamos dar às pessoas uma noção da magnitude do problema".

Harvey Weinstein durante julgamento em Los Angeles, nos Estados Unidos, em outubro - Etienne Laurent/Pool via REUTERS

Milano foi a primeira figura de peso em Hollywood a dizer o "me too" e fazer a convocação. Em pouco tempo, a onda que surgiu ali virou um tsunami.

Há uma longa história por trás do tuíte histórico, mas um dos seus pontos de culminância acontece onze dias antes, quando o jornal New York Times publica a primeira matéria do que viria a ser uma série de reportagens, fruto do árduo trabalho das jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey.

Partindo da premissa de que as mulheres jamais ocuparam tantas posições de poder no mercado de trabalho, e ainda assim continuavam a sofrer assédio sexual sem que ninguém fosse punido, a dupla resolveu trazer à luz o modus operandi de um agressor contumaz, o então todo-poderoso de Hollywood, Harvey Weinstein.

Kantor e Twohey o investigaram por meses. As duas repórteres americanas enfrentaram toda sorte de resistência, mas conseguiram convencer famosas e anônimas a compartilhar relatos terríveis. E mostraram ao mundo que, além da profícua carreira no cinema, Weinstein era protagonista de uma prolífera história como agressor de mulheres e comandava uma rede de poderosos para acobertar seus crimes.

O trabalho extraordinário de Kantor e Twohey impulsionou o movimento MeToo, que alterou a percepção de homens e mulheres em todo o mundo sobre o que é assédio sexual. A saga das jornalistas serviu de alicerce para o livro "Ela Disse", publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Reconhecido com prêmio Pulitzer, o livro agora vira filme. É inegavelmente um marco. Um final feliz, de algum modo.

Diante de tudo isso, a ideia de que um ciclo que se fecha é um clichê irresistível. Mas e daí? O que mudou? A violência contra mulheres e meninas continua impressionantemente alta. Entretanto, após o MeToo, os episódios de violência deixaram de ser um segredo enterrado no coração das vítimas.

O movimento MeToo produziu um outro paradigma coletivo. Pela primeira vez na história, mulheres de todo o mundo relatam, na arena pública, suas experiências de violência. E isto aconteceu porque o processo do MeToo as fez entender que não são elas as responsáveis pela violência, e sim as vítimas.

Este outro patamar subjetivo alterou não só a forma como estas histórias são vividas, mas como são compartilhadas e ouvidas —no "compliance", na família, na delegacia, na mesa de bar et cetera. A possibilidade de falar e ser ouvida já é uma forma de cura, de justiça restaurativa, mesmo que os tribunais dos homens sigam funcionando parcialmente.

No Brasil, meses antes do MeToo, ainda em março de 2017, nós nos dedicamos à quebra de silêncio da figurinista Su Tonani. Num texto comovente publicado no blog #AgoraÉQueSãoElas, editado por nós e hospedado por este jornal, Tonani revelou detalhes do assédio que sofreu em seu ambiente de trabalho.

O relato da figurinista teve enorme repercussão e inspirou o movimento #MexeuComUmaMexeuComTodas. A coragem é viral, Tonani inspirou mulheres pelo país inteiro a denunciarem seus agressores. Aos avanços feministas, o patriarcado respondeu com a eleição de um projeto reacionário, em 2018. Agora, o longo inverno cede lugar ao novo ciclo. Que mudanças que ainda não conseguimos levar a cabo?

Em seu livro "Viver uma Vida Feminista", Sara Ahmed fala bastante da figura da estraga-prazeres feminista, aquela que acaba sendo a crítica voluntariosa e obstinada da felicidade, aquela que passa a vida vigiando os consensos em busca do que precisava ter acabado a ainda não acabou.

A estraga-prazeres feminista tem memória boa e topa correr o risco de ser reduzida à sua raiva mas não desiste das suas reivindicações. Somos nós. Poderíamos apenas celebrar o final feliz da empreitada perigosa das duas jornalistas e louvar o movimento feminista que inaugurou um tempo novo, um novo normal.

Carey Mulligan e Zoe Kazan em cena do filme 'She Said', dirigido por Maria Schrader
Carey Mulligan e Zoe Kazan em cena do filme 'Ela Disse', dirigido por Maria Schrader - JoJo Whilden/Divulgação

Mas ainda há muito por fazer. É preciso começar pela interrupção dos retrocessos, através da revogação dos decretos que liberaram as armas que fizeram aumentar o feminicídio. Para depois promover os avanços: constitucionalizar o cuidado como direito humano é uma agenda central do novo ciclo político.

Torcemos para você que nos lê compreenda outra lição de Sara Ahmed —o fato de você descrever um problema não significa que você criou um problema.

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