Morre Judith Lauand, pioneira e grande dama do concretismo no país, aos 100

Pintora morreu em sua casa, em São Paulo, poucos dias depois de ter uma grande retrospectiva de sua obra aberta no Masp

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São Paulo e Salvador

Poucos dias depois da abertura da maior retrospectiva de sua obra, a artista Judith Lauand morreu em sua casa, em São Paulo, nesta sexta-feira pela manhã, meses antes de completar 101 anos. A informação é de sua galerista e amiga Berenice Arvani, que já organizou diversas mostras da pioneira do movimento concreto.

Arvani afirmou que a morte não teve uma causa específica, e se deveu ao fato de a artista estar "bastante debilitada". Conforme a idade avançava e a saúde de Lauand se deteriorava, ela foi deixando de trabalhar em seu ateliê, localizado em seu apartamento, no bairro de Pinheiros, e passou a viver reclusa.

obra de arte
Judith Lauand em sua formatura na Escola de Belas Artes em Araraquara, em 1950 - Acervo Judith Lauand

Lauand será velada ainda nesta sexta e enterrada na manhã deste sábado. O velório será em São Paulo, mas a família prefere não divulgar o local.

Segundo a galerista, Lauand não chegou a ver pessoalmente sua retrospectiva recém-aberta no Masp, o Museu de Arte de São Paulo, mas viu um filme da mostra e ficou emocionada.

Sua última aparição pública se deu na abertura da exposição "Judith Lauand: Os Anos 50 e a Construção da Geometria", no Instituto de Arte Contemporânea, o IAC, em 2015. Desde então, ela permaneceu em casa, sem dar entrevistas.

Pintora e gravadora, Lauand foi a única mulher a integrar o grupo Ruptura, de Waldemar Cordeiro, a partir dos anos 1950, o movimento disparador da arte concreta no Brasil —ela era uma presença feminina expressiva num círculo artístico de poderio masculino.

Em confronto com o abstracionismo, sua pintura passou a absorver mais e mais, a partir daquele ano, os processos matemáticos na composição de cores e planos.

A exposição no Masp, "Judith Lauand: Desvio Concreto", perpassa seu trabalho em 124 obras, dos anos 1950 até a década de 2000. É possível acompanhar o desenvolvimento de sua arte, começando pela sua fase figurativa, logo após ter se formado na Escola de Belas Artes de Araraquara, como se pode ver no quadro "Operário", de 1951, uma tela que mostra um trabalhador talhando seu material de trabalho.

"Um aspecto crucial de sua trajetória que foi deixado à margem é a presença de questões políticas em sua obra, como a repressão da ditadura militar no Brasil, a Guerra do Vietnã e a condição da mulher na sociedade brasileira, quando Lauand aborda temas como violência, sexualidade, submissão e liberdade feminina", afirma Fernando Oliva, curador da exposição no Masp.

Representativas dessas derivações políticas, estão expostas as telas "Atenção", de 1968, "Stop the War" e "Temor à Morte", de 1969.

Nascida em Pontal, no interior de São Paulo, Lauand esteve cercada pela arte desde a primeira infância, numa casa em que se ouvia boa música e onde se liam bons livros. Num ato de mecenato, a família Lupo convidou a jovem artista para estudar na Itália, mas, com menos de 18 anos, ela não conseguiu a permissão de seu pai.

O sonho de olhar de perto os quadros dos mestres da pintura só seria realizado aos 76 anos. Em 1998, acompanhada pela irmã, Olga, e pelas sobrinhas-netas Elissa e Patrícia, Lauand entrou pela primeira vez em um avião e realizou uma viagem extensa pela Europa, visitando museus da Espanha, da Itália, da França e do Reino Unido. À noite, de tão ansiosa, perdia o sono. No Louvre, choraria diante da "Mona Lisa", de Leonardo da Vinci.

obra de arte
Judith Lauand atua como monitora na 2ª Bienal de São Paulo, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em janeiro de 1954 - Acervo Judith Lauand

A artista viveu exclusivamente de sua arte. "Não escreveu críticas nem fez curadorias. Sempre viveu apenas da venda de seu trabalho", conta Manoel Lauand, seu sobrinho.

Lauand chegou a desfazer dois noivados para se dedicar à carreira. "Ela foi a transgressora da família", diz Elisa Lauand, sobrinha-neta de Lauand. "E nunca se casou, chegou a fazer uma cópia de um anel de noivado e ficou usando, para não ter confusão com os pais."

Um momento importante em sua carreira foi em 1954, quando ela trabalhou como monitora da segunda Bienal de São Paulo. Na ocasião, a jovem entrou em contato com a efervescência cultural do circuito das artes plásticas à época, conhecendo as obras de Geraldo de Barros e Alexandre Wollner.

Também em 1954, Lauand realizou a primeira exposição individual da carreira, na galeria Ambiente. No ano seguinte, Waldemar Cordeiro a convidou para integrar o Ruptura. No interior do grupo, se liberta da figuração para alcançar a abstração geométrica.

Em 1956, com novo pioneirismo, Lauand participou da 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, que marcou sua aproximação com a poesia concreta de Décio Pignatari e dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos.

"Apesar de todos os membros do grupo Ruptura serem seguidores das propostas do artista suíço Max Bill (1908-1994), cada um deles possuía suas singularidades", afirma Celso Fioravante, crítico vinculado a exposições da artista na década de 2000.

"A diferença de Judith Lauand é que ela entrou no grupo em um segundo momento, ao lado de Fiaminghi e Nogueira Lima, e ainda era uma artista em formação, advinda da figuração, quando os membros iniciais do grupo já se mostravam como um grupo coeso, adeptos do concretismo que vigorava com força na Europa e em países da América do Sul, como Venezuela, Uruguai e Argentina".

"Minha integração na arte concreta foi total", disse a artista, que preservou suas primeiras escolhas, em meio a rupturas geracionais. "Não vi com bons olhos a criação do neoconcretismo. Pensei: se os concretos do Rio colocaram a necessidade de exprimir-se, de tornar expressivo o vocabulário da arte concreta, que o façam".

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