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Cormac McCarthy fica ainda mais pessimista no romance 'O Passageiro'

Lançamento do autor americano, conhecido pelo niilismo e pelos machos durões, usa a física para chegar ao desencanto

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Camila von Holdefer

Crítica literária e tradutora, é doutoranda em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

O Passageiro

  • Preço R$ 84,90 (392 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Cormac McCarthy
  • Editora Alfaguara
  • Tradução Jorio Dauster

Cormac McCarthy costuma ser associado a um conjunto de temas, representações e códigos típicos da masculinidade, com romances repletos de personagens durões, violência e lutas encarniçadas pela sobrevivência em paisagens inóspitas. O melhor exemplo talvez seja "Meridiano de Sangue", que tem como cenário um Velho Oeste de atmosfera niilista.

Não é muito diferente em "O Passageiro". Se o romance ganhar uma adaptação para as telas, é uma pena que Bobby Western, o protagonista de 37 anos, já não possa ser interpretado por Clint Eastwood.

homem branco idoso de cenho franzido
O escritor Cormac McCarthy em retrato de 2007, quando levou o Pulitzer por 'A Estrada' - Derek Shaptor/Universidade Columbia

Western é um sujeito taciturno e atormentado pelo passado; seu jeito arredio é irresistível para as mulheres. Há algo de trágico na figura de Western —no sentido do herói grego que não tem como escapar ao próprio destino—, como McCarthy não se cansa de sublinhar.

"O Passageiro" se passa sobretudo na década de 1980 na cidade americana de Nova Orleans. Western, que já foi um físico promissor e um piloto de corrida, hoje é mergulhador. Sua vida sai dos trilhos quando ele é contratado para averiguar um jato que caiu no mar —entre outros detalhes suspeitos, há um passageiro a menos a bordo.

Alguém parece achar que Western tem mais informações do que diz ter e passa a perseguir o protagonista. Isso se deve, talvez, ao seu passado, que permanece em grande parte um enigma. Seu pai foi um físico de ponta que participou ativamente do aprimoramento da bomba atômica. Sua irmã Alicia, com quem Western manteve uma relação, digamos, de um Édipo diferenciado, e pela morte de quem ele se culpa, também está envolta em certo mistério.

Há outro Kid aqui, como em "Meridiano" —o Kid Talidomida, uma figura com má formação nos membros superiores que volta e meia surge —acompanhado de uma trupe bizarra— no quarto de Alicia. Ela, que aparentemente sofre de esquizofrenia, também é dona de uma brilhante mente matemática.

Uma das sensações da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, do ano passado, o chileno Benjamín Labatut tem sido aplaudido como um autor original por seus contos centrados em matemáticos e físicos —alguns dos quais avançaram tanto em suas abstrações a ponto de perder o contato com o real, revelando a profunda fenda entre o domínio da lógica e o da psicologia.

Há mais de duas décadas, porém, David Foster Wallace já notara que os "casos de grandes matemáticos com transtornos mentais têm enorme ressonância em escritores e cineastas populares". Os matemáticos, diz Foster Wallace, seriam só "um modelo arquetípico particular da nossa época", como o foram o cavaleiro errante e o artista torturado, e continuam a nos fascinar. O próprio McCarthy começou a escrever "O Passageiro" na década de 1970.

O livro traz diálogos desconcertantes de Alicia com Kid, além de conversas de Western com outros personagens. McCarthy, é verdade, sempre se destacou como um autor de imagens —massas de nuvens azuladas iluminadas pelo sol etc. Nada disso se perde por completo —surgindo sobretudo nas cenas em que Western se isola de tudo e todos—, mas é diluído nessa profusão de diálogos, que têm, aqui, um componente inédito em relação aos outros livros.

Isso porque "O Passageiro" remete ao ethos já estabelecido de dois autores da mesma geração de McCarthy —Don DeLillo e Thomas Pynchon.

Do primeiro, o romance absorve os diálogos ao mesmo tempo ligeiros e densos, quando não abertamente técnicos ou filosóficos; a forma um tanto sombria de elucubrar as consequências morais e existenciais do progresso científico; a reinterpretação obstinada da história recente dos Estados Unidos, sobretudo das controvérsias envolvendo o assassinato de John Kennedy.

Do segundo, McCarthy assimila imagens saídas direto do vaudeville, o puro e simples nonsense, a paranoia onipresente, os meandros e reviravoltas rocambolescos, os personagens excêntricos e suas declarações espirituosas.

É nessa ânsia de encaixar uma frase de impacto a cada três linhas, aliás, que reside o ponto fraco do romance, uma vez que não é difícil cair no lugar-comum. "Não atravessamos os dias, Squire. Eles nos atravessam", diz um dos personagens.

Quanto aos próprios mistérios, nem todos são esclarecidos. "O Passageiro" compõe um díptico com um livro que o autor chamou de "Stella Maris", protagonizado por Alicia, que deve sair por aqui este ano.

O que se tem em "O Passageiro" é um McCarthy ainda mais pessimista —se é que é possível—, que vai buscar na tragédia grega e nos avanços da física a matéria-prima para moldar o próprio desencanto.

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