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Oscar com 'Top Gun' e Spielberg mostra a crise de identidade do prêmio

Lista de indicados escancara que avanços na diversidade são graduais, em especial em direção, sem mulheres ou negros

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São Paulo

Não é segredo para ninguém que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas é um clubinho restrito, com maioria que pensa o cinema de maneira uniforme e pouco ousada. Mas mudanças no quadro de votantes têm sido implementadas e, no meio do processo, o Oscar parece sofrer de uma crise de personalidade, escancarada mais uma vez nos indicados anunciados nesta terça-feira.

Gabriel LaBelle em cena do filme "Os Fabelmans", de Steven Spielberg
Gabriel LaBelle em cena do filme 'Os Fabelmans', de Steven Spielberg - Merie Weismiller Wallace/Divulgação

É estranho pensar que dois anos após a vitória de "Parasita", a organização tenha dado o último prêmio máximo a "No Ritmo do Coração". Da mesma forma, é curioso ver a lista divulgada agora para a 95ª edição, com cerimônia marcada para 12 de março, encabeçada pelo popular e estranhíssimo "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" e pelos sóbrios "Os Banshees de Inisherin" e "Nada de Novo no Front".

Falamos, afinal, de um filme pop que mergulha nos multiversos e brinca com um leque imenso de gêneros, com 11 indicações, em contraste com uma dramédia verborrágica britânica e o remake de um vencedor do Oscar de 1930, sobre a Primeira Guerra Mundial –cada um com nove.

Ao lado deles, na confusa corrida de melhor filme, estão os dois blockbusters mais rentáveis do ano passado, "Top Gun: Maverick" e "Avatar: O Caminho da Água", mas também os herméticos "Tár" e "Entre Mulheres", e o fiasco de bilheteria "Os Fabelmans", de um dos nomes mais estabelecidos do cinema americano, Steven Spielberg.

Ainda aparecem "Triângulo da Tristeza", bancado pelo Festival de Cannes mas dentro da popular onda de fazer graça com os super-ricos, e "Elvis", um meio-termo entre o mainstream –é a bem-sucedida biografia do rei do rock– e o cabeçudo –tem a afetação difícil de digerir de Baz Luhrmann.

Podemos dizer que é uma seleção para todos os gostos e também o reflexo de uma Academia que está perdida no personagem. Se por um lado há a turma mais velha, resiliente e tradicional dando as cartas, por outro há um grupo de votantes recém-chegado, disposto a apontar os holofotes em novas direções.

Vários filmes da temporada que foram considerados "de Oscar" –aqueles que, se não são concebidos para agradar aos votantes, ao menos se lançam como fortes concorrentes desde cedo– ficaram de fora, como "Um Filho", "Amsterdam" e "Emancipation - Uma História de Liberdade". "Império da Luz", talvez o maior "Oscar bait" do ano, ficou só com melhor fotografia, talvez pela eterna admiração dos votantes a Roger Deakins.

Nesse sentido, a crise da premiação com o circuito de arte é espelho fiel da crise da indústria, que ainda vê bilheterias oscilantes nas grandes produções. Um cenário curioso, considerando que campeões financeiros recentes da Marvel, como "Vingadores: Ultimato" e "Homem-Aranha: Sem Volta para Casa", foram confinados à categoria de efeitos visuais mesmo com ampla campanha em anos recentes.

Em termos de diversidade, a Academia também vacila. Na ressaca da dobradinha de melhor direção a mulheres, que por sua vez veio após um enfileiramento de estrangeiros vitoriosos, o Oscar de 2023 apresentou uma lista totalmente branca e masculina, com Martin McDonagh, Steven Spielberg, Todd Field, a dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert e Ruben Östlund, o único não anglófono.

Isso se refletiu na corrida de melhor filme, que tem como único longa dirigido por uma cineasta "Entre Mulheres", reduzido aqui a um tokenismo similar ao de "Selma", de 2015. A trama de Sarah Polley foi lembrada ainda em roteiro adaptado, mas só.

Já outros filmes de temática feminina, como "A Mulher Rei" e "Ela Disse", que começaram a corrida com força, foram deixados para trás na seleção principal. "Aftersun", queridinho da temporada dirigido e escrito por Charlotte Wells, apareceu de última hora na categoria de melhor ator, para o também muito querido Paul Mescal.

O caso de "A Mulher Rei" é ainda mais grave quando se considera que a categoria principal do Oscar ficou sem um indicado dirigido por negros. É apenas a terceira vez na última década que isso acontece, num contraste com as cinco indicações de "Pantera Negra: Wakanda para Sempre". O filme da Marvel acabou restrito a categorias de menos prestígio, salvo melhor atriz coadjuvante.

A velha aversão a filmes de gênero também se manteve, com "Não! Não Olhe!", de Jordan Peele, esquecido até mesmo nas seções técnicas. O mesmo aconteceu com "O Homem do Norte" e "O Menu", que flertam com o suspense, estilo historicamente ignorado pela Academia.

É como se ampliar a base de votantes para fora dos Estados Unidos não bastasse. Contra todas as possibilidades, o Oscar se mantém fechado em velhos ritos e ligado ao que é mais familiar. Esta edição que o diga, já que a disputa de melhor filme parece dominada por dramas de pais e filhos. Dá até para teorizar que "Nada de Novo no Front" está ali por se tratar de uma história de rebentos perdidos.

Vale destacar que, entre as atuações, os favoritíssimos até aqui são os asiáticos Michelle Yeoh e Ke Huy Quan, de "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo", em atriz e ator coadjuvante, e Angela Bassett, de "Pantera Negra: Wakanda para Sempre", em atriz coadjuvante, num sinal de que ao menos nas categorias de atuação a diversidade já foi assimilada.

Contemplar essas figuras não deixa de ser, também, uma forma de a Academia se redimir com nomes potentes do cinema historicamente ignorados pelas premiações ou pela própria indústria. Brendan Fraser, o mais forte candidato a ator principal, entra nesse debate, que ainda inclui Bill Nighy e Brendan Gleeson –em suas primeiras indicações– e a própria Bassett –lembrada pela Academia apenas em 1994.

Mas de novo nos pegamos diante de um impasse ao notar a safra especialmente forte de filmes estrangeiros deste ano. Em seu esforço de internacionalização, a Academia se mostra interessada em títulos que convêm a ela, fechada a experiências estrangeiras diferentes do habitual.

É o caso do mexicano "Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades", lembrado apenas para contemplar o franco-iraniano Darius Khondji, em sua segunda indicação em fotografia. As três nomeações de "Triângulo da Tristeza" também repetem o padrão do "artista favorito" que permeou a campanha de "Parasita", agora com Ruben Östlund no lugar de Bong Joon-ho.

Já a categoria de filme internacional, com exceção do drama de tribunal histórico de "Argentina, 1985", está atracada a produções europeias. O malabarismo maneirista do sul-coreano "Decisão de Partir" e o drama emocional do indiano "Last Film Show" foram descartados em favor de produções laureadas em Cannes, como "EO" e "Close".

Mesmo "Holy Spider" e "Garoto dos Céus", representantes da Dinamarca e da Suécia rodados no Oriente Médio, perderam espaço para o irlandês queridinho do festival de Berlim do ano passado, "The Quiet Girl".

Chama a atenção também o estranhamento com "RRR", fenômeno de bilheteria indiano e exportado para o mundo. Mesmo com forte campanha, o épico anticolonialista com inspiração em Hollywood foi restrito a uma indicação esotérica, em canção original. O hit "Naatu Naatu" termina unido às divas pop Lady Gaga e Rihanna, bem como a compositora recordista Diane Warren.

Enquanto isso, "Nada de Novo no Front", um longa de guerra tradicional, alemão, inspirado no mesmo livro que serviu de base para o terceiro vencedor do Oscar de melhor filme da história, é lembrado em nove categorias. Ah, Hollywood.

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