Descrição de chapéu Livros

Ruy Castro e Lira Neto ensinam a arte de fazer biografias em novos livros

'A Vida por Escrito' e 'A Arte da Biografia' reúnem diretrizes dos escritores para reconstituir o mundo real e seus personagens

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

ilustração biografias

Ilustração com recortes de personagens biografados por Ruy Castro e Lira Neto Silvis

São Paulo

Imagine passar anos em uma época que não é a sua. Mergulhar em documentos, fotos, mobílias e histórias que pertenceram a outros. Escolher viver dividido entre a existência alheia e a sua e reconstruir um passado através dos restos que ficaram depois que a festa acabou.

Dois escritores acabam de lançar livros sobre um mesmo ofício. Ruy Castro publica "A Vida por Escrito", e Lira Neto, "A Arte da Biografia", ambos pela Companhia das Letras. Os autores, que deram aulas sobre a escrita biográfica, decidiram passar para o papel o que têm para ensinar. O resultado são dois livros que têm pontos de encontro, mas carregam as particularidades da visão de cada um.

ilustração biografias
Colagem de Silvis com personagens retratadas por Ruy Castro e Lira Neto - Silvis

Ruy Castro estreou na biografia com o que ele chama de livros de "reconstituição histórica", que contam a história de uma época a partir das pessoas que a vivenciaram. "Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova" saiu no final de 1990 e representava um dos primeiros frutos das conversas de dois jornalistas cariocas que trocavam, na praça em frente à sede da revista Manchete, opiniões sobre a escrita biográfica e as obras que liam —João Máximo e o próprio Ruy Castro.

O segundo livro de Castro, agora eleito imortal da Academia Brasileira de Letras, foi "O Anjo Pornográfico", que esmiuçou a vida do dramaturgo Nelson Rodrigues e o reapresentou ao Brasil como uma figura tão complexa, polêmica e dramática quanto suas obras. Daí para frente escreveu sobre Garrincha, Carmen Miranda, o samba-canção, o Rio de Janeiro dos anos 1920, Ipanema e mais.

"Para o bem ou para o mal, um biógrafo pode alterar radicalmente a visão que se tem do biografado e influenciar o pensamento de uma massa de leitores", diz Castro, que também é colunista deste jornal. "Modestamente, acho que fiz isso com 'O Anjo Pornográfico', corrigindo a visão que se tinha de Nelson tanto à direita quanto à esquerda, e com 'Estrela Solitária', apagando a crença de que Elza Soares destruíra a vida de Garrincha."

Já Lira Neto publicou sua primeira biografia no selo editorial da Fundação Demócrito Rocha, onde trabalhava. "O Poder e a Peste: A Vida de Rodolfo Teófilo" contava a história de um farmacêutico, sanitarista e escritor que atuou na linha de frente do combate da varíola no início do século 20. O livro ganhou visibilidade em jornais para além do Ceará, seu estado natal, e rendeu ao escritor uma participação no antigo talk show Jô Soares Onze e Meia, do SBT.

Poucos anos depois, o escritor pediu as contas do jornal O Povo, onde tinha encontrado pela primeira vez estabilidade após uma trajetória profissional errática, deixando seu editor e os colegas de trabalho incrédulos e duvidando de sua saúde mental. Tinha decidido que se dedicaria à escrita de biografias dali para frente.

Os 5.000 exemplares da primeira tiragem de seu segundo livro, "Castello: A Marcha para a Ditadura", se esgotaram em um ano. Era um resultado bom para o autor, mas não o suficiente para que vivesse dos direitos autorais. Teve de trabalhar, então, com edição de livros e comunicação governamental. "O Inimigo do Rei: Uma Biografia de José de Alencar", ganhador de um prêmio Jabuti em 2007, também não trouxe o conforto econômico.

A situação só melhorou com "Maysa: Só Numa Multidão de Amores", um sucesso de vendas que transformou a artista em uma espécie de musa cult e, mais tarde, serviu como fonte para a minissérie lançada pelo diretor Jayme Monjardim, filho de Maysa.

Neto acredita que a biografia deve partir de processos criativos de investigação e escrita. "Precisamos utilizar a fonte de forma absolutamente rigorosa, mas, ao mesmo tempo, fazer com que esse olhar minucioso seja amparado por um texto vibrante e criativo, numa narrativa saborosa, extraída de uma documentação aparentemente morta de cores, texturas, sabores, sensações auditivas e visuais, da forma mais polissêmica e polifônica possível", afirma.

Para garantir a intimidade com a narrativa, Neto busca o maior número possível de imagens do entrevistado, reparando nas feições, na postura e nas roupas, e tenta ainda se aproximar da história também com o corpo.

Quando escrevia sobre Getúlio Vargas, viajou até São Borja, no Rio Grande do Sul, cidade onde o personagem nasceu. "Precisei ir até lá para segurar, na palma da mão, um punhado da terra avermelhada da estância onde morou o ex-presidente", escreveu no livro.

A polifonia marca sua escrita, já que Neto acredita que fornecer versões distintas de um mesmo episódio, dando espaço para vozes discordantes, pode enriquecer a narrativa. Em seu livro, ele compara essas várias versões ao filme "Rashomon", de Akira Kurosawa.

O longa-metragem narra o estupro de uma mulher e o assassinato de seu marido pelo depoimento de quatro pessoas que se abrigam juntas durante uma tempestade. "Se você tiver cinco testemunhas, provavelmente vai ter seis relatos diferentes", diz. "Desconfie do historiador ou do biógrafo que diz 'eu escrevo a verdade dos fatos'. Que verdade? A verdade de quem, para quem?"

Ruy Castro é mais duro quanto ao uso de diferentes versões. "Uma biografia ou reconstituição histórica é algo que leva anos para fazer. Nesse espaço considerável de tempo, o autor tem a obrigação de encontrar a informação que vai dissolver a lacuna e desempatar entre duas versões do mesmo fato", afirma. "É só não desanimar. Dizer ao leitor que existem versões divergentes e deixar por isso mesmo é coisa de preguiçoso."

Mas os biógrafos também têm pontos de concordância. Eles se encontram quando o assunto é quais informações devem entrar em uma biografia ou em uma reconstituição histórica. Se ela pode ser checada e colabora de alguma forma para a compreensão do personagem ou da época retratada, deve ser usada. Já episódios incertos ou que não têm um papel relevante na trama, por mais picantes e chamativos que sejam, devem ficar de fora, dizem.

Ambos também repulsam o termo "jornalismo literário". "Ao querer fazer literatura, no mais das vezes, o jornalista termina por cometer literatices", diz Lira Neto, em seu livro. "Se o autor quiser usar a biografia para exibir seus dotes estilísticos, deveria se dedicar à poesia ou à literatura, que são o território da criação", afirma Ruy Castro.

Castro considera o "novo jornalismo", corrente que tenta trazer elementos estilísticos e narrativos da ficção para a não ficção, coisa de "exibicionistas e romancistas frustrados". Segundo ele, jornalistas como Norman Mailer, Tom Wolfe e Gay Talese estavam sempre mais preocupados em escrever do que apurar.

Os dois não devem parar de escrever tão cedo. Ruy Castro deve lançar uma nova reconstituição histórica em dois ou três anos, e Lira Neto está com duas biografias a caminho —uma de Oswald de Andrade, que quer publicar até o ano que vem, quando se completam 70 anos da morte do modernista, e outra de Luiz Gonzaga, que deve sair depois.

A vida por escrito: Ciência e arte da biografia

  • Preço R$ 64,90 (184 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Ruy Castro
  • Editora Companhia das Letras

A arte da biografia

  • Preço R$ 64,90 (192 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Lira Neto
  • Editora Companhia das Letras
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.