Descrição de chapéu Livros

Sou escritora negra, mas minha obra é universal, diz autora de 'Um Defeito de Cor'

Para Ana Maria Gonçalves, que lança nova edição do livro, classificar obra como literatura negra diminui a sua importância

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

'Ainda a Lamentar', obra de Rosana Paulino que ilustra a nova edição de 'Um Defeito de Cor', publicada pela Record Rosana Paulino/Divulgação

São Paulo

Aos 29 anos, a autora Ana Maria Gonçalves decidiu escrever o próprio obituário e não gostou do que leu. Estava infeliz com a rotina em São Paulo e insatisfeita com a carreira de publicitária. "Não era aquilo que eu queria deixar para a vida. Então decidi procurar o que fazer."

Encontrou uma dica em "Bahia de Todos os Santos", de Jorge Amado. No prefácio do livro, o escritor faz um convite: "Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa cotidiana." Gonçalves largou o emprego e se mudou para lá, onde escreveu "Um Defeito de Cor". "O encontro com o livro não foi coincidência, foi Exu", diz a autora, que não costuma dar entrevistas.

Lançado em 2006, o romance se tornou um marco incontornável da literatura contemporânea por retratar os males da escravidão e dar protagonismo a uma mulher negra. A obra é vencedora do Prêmio Casa de Las Américas e está em sétimo lugar na lista de livros mais importantes para entender o Brasil do projeto "200 anos, 200 livros", da Folha.

mulher negra de vestido preto sentada, com os braços cruzados na perna
A escritora Ana Maria Gonçalves, que publica uma nova edição de luxo de "Um Defeito de Cor" pela Record - Léo Pinheiro/Divulgação

"Um Defeito de Cor" ganha agora nova edição de luxo pela Record, com ilustrações da artista plástica Rosana Paulino e um conto inédito da autora.

Ao longo de 986 páginas, o livro conta a história de Kehinde, sequestrada do reino de Daomé —atual Benin— aos oito anos para ser escravizada no Brasil durante o século 19. Ela conquista a própria liberdade, mas vê um de seus filhos ser vendido como escravizado pelo próprio pai e acaba retornando à África.

A trajetória da protagonista é inspirada em Luiza Mahin, mãe do poeta e jurista Luiz Gama e tida como uma das líderes da Revolta dos Malês, levante de escravizados ocorrido em Salvador, em 1835.

Gonçalves conta que o processo de escrita do livro a ajudou a se entender enquanto mulher preta. Por outro lado, a autora diz que sua obra não pode ser rotulada como literatura negra.

"Durante muito tempo, os rótulos de literatura negra e marginal foram usados para dizer de maneira implícita que esses livros não tinham qualidade para serem alçados à categoria de Literatura", diz ela. "Sou uma escritora negra, mas minha obra é universal."

A Kehinde é uma personagem contraditória. No Brasil, ela se apega às suas raízes africanas. Porém, quando retorna à África, chama os africanos de selvagens. Por que a senhora construiu uma heroína falha? A Kehinde foi escravizada aos oito anos de idade. Ela tinha uma vida em família e, de repente, tudo isso foi tirado dela. A partir de então, ela faz um pacto de sobrevivência. Ela vai fazer de tudo para ter a melhor vida possível e para proporcionar uma existência digna para os seus filhos e netos. Ela vive tudo o que tinha que viver, com acertos e erros.

Eu reivindico um "lugar de falha" para os meus personagens negros. No Brasil, quem é preto, pobre, mulher ou LGBTQIA+ não tem direito de errar nunca, enquanto o homem branco pode falhar sem que isso signifique perder emprego, amigos ou ser cancelado.

Grande parte dos personagens negros da ficção mainstream brasileira é completamente previsível. Os personagens tortos e falhos me interessam mais. Eles têm mais a dizer do que personagens que estão sempre tentando andar na linha.

A sinhá Ana Felipa é uma personagem que comete atos brutais, mas é capaz de amar o filho da mulher que ela escraviza. Por que a senhora humanizou essa antagonista? Eu queria personagens que se aproximassem da gente e com os quais o leitor pudesse se identificar. Ninguém é mau ou bom. Esse modo de retratar racistas e escravocratas na ficção mainstream causa um grande dano para a conversa sobre o que é racismo, porque as pessoas aprendem que racismo é sobre crueldade.

Só que a maior parte dos atos racistas acontecem por meio de pequenas ações no dia a dia. É a pessoa que puxa a bolsa para mais perto quando enxerga um rapaz negro. É o vigia da loja que segue a pessoa negra assim que ela entra.

Reduzir o racismo à crueldade faz com que a gente não consiga punir atos racistas, porque as pessoas falam: "Nossa! Mas é uma senhora tão boazinha. Ela não pode ser racista." Numa sociedade racista como a nossa, não acredito em quem fala que não é racista. Racismo é algo que está em todos nós, seja de maneira ativa, seja de maneira introjetada.

A gente precisa parar de classificar como monstro pessoas que cometem não só racismo, mas outros atos de opressão. Não foi um monstro que cometeu aquela violência. Foi um ser humano. Racistas são pais, avós e tios. São pessoas que podem ser completamente boas e instruídas, mas ainda assim serem racistas.

Ativistas dizem que expor de modo excessivo a violência contra negros pode banalizá-la. No livro, há passagens que descrevem de maneira explícita a tortura de escravizados. Quando é que retratar o sofrimento deixa de ser denúncia e passa a ser banalização? Depende muito do contexto em que a violência é retratada e de quem vai fazer isso. Eu já vi obras de artistas brancos achando que estão fazendo denúncia e acabam retratando pessoas negras em situações de tortura ou de humilhação, como se fossem objetos de voyeurismo. Nesses casos, há uma fetichização do corpo negro, algo que você dificilmente vai ver um artista negro fazendo.

Mas, no livro, não tinha como deixar de falar da violência. Primeiro, porque a obra se passa em um contexto de escravidão. Segundo, porque no Brasil defendeu-se durante muito tempo a ideia de que a escravidão foi mais branda aqui porque os portugueses eram bonzinhos com os escravizados.

Literatura negra e marginal são dois rótulos criados para categorizar obras escritas por pessoas negras ou faveladas. De que modo a senhora enxerga essas categorias? Eu me apresento como uma escritora negra, porque isso é muito importante politicamente, mas a literatura que eu faço é universal. Ser uma mulher negra informa o lugar de onde eu escrevo e os interesses que me atravessam.

Mas eu brigo para que a minha obra seja vista como literatura, sem estar em uma caixinha. Caso contrário, vão achar que o que eu faço é exótico ou panfletário e que eu só devo ser lida por negros.

Veja o tratamento que tem sido dado a Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus, duas escritoras contemporâneas. Como mulher branca, o que a Clarice escreveu é visto como literatura universal, que fala sobre as experiências de todo mundo, enquanto a obra de Carolina é vista como literatura de mulher preta favelada.

Durante muito tempo, os rótulos de literatura negra e marginal foram usados para dizer de maneira implícita que esses livros não tinham qualidade para serem alçados à categoria de literatura, como se fossem obras militantes. "Um Defeito de Cor" não é a história dos negros escravizados. É a história do Brasil.

"Um Defeito de Cor" é um dos grandes romances históricos da literatura brasileira. Como foi o processo de pesquisa e quais desafios a senhora encontrou para narrar a vida da Luiza Mahin? Eu me mudei para Salvador decidida a escrever um livro sobre a Rebelião Malê. Na minha pesquisa, descobri a Luiza Mahin, que virou a protagonista do livro, enquanto a rebelião virou somente um capítulo da história.

Não existe registro oficial da vida dela. O que há são alguns escritos do Luiz Gama, nos quais ele conta que a mãe dele era do povo mahi, o que dá pistas sobre a região de origem dela. Ele também a descreve como uma mulher muito altiva, com muita iniciativa, baixinha. Foi a partir dessas dicas que surgiu a Kehinde, essa personagem que eu inventei para contar o que poderia ter sido a vida da Luiza Mahin.

Para construir a trajetória dela, eu pesquisei a história de mulheres escravizadas que viveram na mesma época que ela. Consultei recortes de jornal, cartas-testamento, cartas de alforria. Foi, portanto, uma construção por aproximação, por verossimilhança.

Dos cinco anos aos quais eu me dediquei ao "Um Defeito de Cor", dois anos foram só de pesquisa. A escrita em si demorou um ano, esse processo de tirar a história de dentro da minha cabeça é rápido, quase braçal. Depois foram mais dois anos de reescrita, que é o que eu amo fazer de verdade, burilar o texto, brigar com as palavras.

Qual é a importância da Revolta dos Malês e de que modo esse acontecimento continua inspirando os movimentos negros contemporâneos? Foi a primeira grande tentativa de rebelião urbana no Brasil. Foi um movimento inspirado pela Revolução Haitiana. A ideia ali era separar a Bahia do Brasil e formar o que os historiadores depois chamaram de califado baiano, isto é, um governo de negros. O plano era expulsar ou matar os brancos, que ficaram preocupados com o que poderia acontecer com eles se aquela rebelião tivesse dado certo.

Isso mudou o rumo da escravidão no Brasil. A partir dali, percebeu-se que seria necessário arrumar um outro sistema, porque aquele não iria se sustentar por muito mais tempo.

Essas revoltas escravas deixaram um aprendizado para os movimentos negros, que é a necessidade de se encontrar e discutir entre a gente assuntos que a sociedade nunca quis discutir em público. Para nós, não é uma opção deixar de falar de racismo e de violência policial. São assuntos que a gente já discutia desde antes da abolição da escravatura, só que não chegavam no ouvido dos brancos.

No livro, a Kehinde enfrenta obstáculos que a transformam. Por outro lado, de que modo a criação dessa personagem transformou a senhora? Eu tenho uma identidade mestiça como boa parte da população brasileira. Minha mãe é negra e meu pai é branco. Eu não me lembro de a gente falar de raça na minha família.

Essa identidade mestiça é muito negociável. Por muito tempo, quando eu falava que era negra, as pessoas falavam: "Você não precisa falar isso. Você é clarinha." Decidi que precisava conhecer melhor a minha história. "Um Defeito de Cor" era um livro que eu queria ter lido e não encontrei.

Os cinco anos em que eu convivi com a Kehinde foram um período de muito crescimento, no qual eu me entendi como mulher preta. Houve uma maturação da negritude em mim.

Por que a senhora não escreveu nenhum livro desde "Um Defeito de Cor"? Na época, diziam que ninguém iria ler um livro com mais de 350 páginas. Eu achava que ninguém ia publicar e que ninguém ia ler, mas era um livro que eu precisava escrever. Para minha surpresa, acabou vendendo muito. Chegou rápido dentro das universidades. Em pouco tempo, já tinha gente fazendo tese de doutorado sobre o livro.

Essa recepção me assustou. Houve um bloqueio. Comecei uns 30 livros sobre temas diversos, mas nada que passasse pelo crivo do "Defeito de Cor". Hoje, eu entendo. Abriu um portal, eu entrei, escrevi e saí. A porta não abre mais. Tenho que bater em outras portas. Por isso, fui estudar e escrever para cinema, teatro, ópera e TV.

Eu tenho um livro finalizado que está descansando na gaveta. Estou esperando a hora de reescrever. É uma história de ficção científica que se passa em São Paulo em 2064, sobre um garoto de 13 anos. Vai do passado para o futuro. Acho que o conto inédito que aparece no final da nova edição do "Defeito de Cor" dá uma ideia sobre aonde minha cabeça está indo.

O presidente Lula recomendou algumas vezes a leitura de "Um Defeito de Cor", obra que ele leu quando estava preso. Que marca você espera que seu livro tenha deixado no presidente? Depois que ele leu, recebi um bilhete por meio do Instituto Lula dizendo que o livro o tinha ajudado a entender as relações raciais e a escravidão no Brasil de uma outra maneira. Olhando para esse ministério que foi montado agora, a gente sente uma pontinha de esperança de que haja alguma transformação.

Eu não quero representatividade. Eu quero presença. Tem que ter presença de pretos, mulheres, indígenas e pessoas LGBTQIA+. Mas é importante que essas pessoas tenham poder de agir, porque só falar não adianta.

Não estou dizendo que foi só o meu livro que ajudou o Lula a entender a importância de ter um governo inclusivo. Mas, se o "Defeito de Cor" tocou o presidente de alguma forma, isso é um presente para todo artista.

RAIO X | Ana Maria Gonçalves, 52

Nascida em Ibiá, em Minas Gerais, formou-se em publicidade, área na qual atuou antes de se dedicar à literatura. Escreveu os romances "Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim", de 2002, e "Um Defeito de Cor", de 2006. Vencedora do Prêmio Casa de las Américas, foi escritora residente nas universidades Tulane e Stanford, nos EUA.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.