Indígenas ocupam Masp e mostram arte influenciada por chá de ayahuasca

Museu abre exposições do coletivo Mahku e de Carmézia Emiliano em ano que consagra povos originários no circuito

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'Parixara', obra de 2020 de Carmézia Emiliano, de Roraima, que faz parte do acervo do Masp

Detalhe de 'Parixara', obra de 2020 de Carmézia Emiliano, de Roraima, que faz parte do acervo do Masp Eduardo Ortega/Divulgação

São Paulo

Um ícone no imaginário de quem frequenta o cenário cultural paulistano está de cara nova. A tradicional rampa vermelha do subsolo do Masp, o Museu de Arte de São Paulo, foi integralmente pintada com representações multicoloridas de cobras, folhas, malocas e índios —em uma das laterais, o desenho de um jacaré imenso liga os dois pavimentos inferiores do museu.

Na mitologia dos indígenas huni kuin, o réptil significa uma ponte entre mundos distintos, afirma Ibã Huni Kuin, um dos responsáveis pela pintura, uma metáfora da entrada triunfal da arte dos povos originários no museu da avenida Paulista.

Ibã Huni Kuin, Bane Huni Kuin, Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)  Sem título, 2017
Pintura sem título de Ibã Huni Kuin e Bane Huni Kuin, do Movimento dos Artistas Huni Kuin, ou Mahku - Eduardo Ortega

A intervenção na rampa, a primeira desde os anos 1970, faz parte da exposição do coletivo Mahku, o Movimento dos Artistas Huni Kuin —formado por representantes deste povo indígena do Acre—, que ocupa a partir desta sexta-feira o segundo subsolo da instituição.

No primeiro subsolo, o Masp inaugura, também na sexta, uma mostra individual de pinturas da indígena macuxi Carmézia Emiliano. Ambas as exposições marcam o início do ano dedicado aos povos originários no museu.

Na mostra do coletivo Mahku, vemos pinturas de grandes dimensões e esculturas em forma de totens, trabalhos criados a partir das visões que os indígenas têm quando bebem chá de ayahuasca. A ingestão do alucinógeno não é só um ritual a que eles se dedicam de tempos em tempos, mas sim uma força organizadora da vida huni kuin, afirma Guilherme Giufrida, organizador da exposição.

Ou seja, a arte huni kuin é a tradução em imagens da alteração de consciência gerada pela ingestão da planta. Na exposição, isto aparece em algumas poucas pinturas abstratas, de formas geométricas sobre papel, e muitas obras figurativas.

Um dos elementos que se repete, seja nos trabalhos sobre tela ou nas esculturas, é a cobra. Ela aparece, por exemplo, "enrolada" junto a pinturas corporais aplicadas nos totens de Kássia Huni Kuin.

Segundo a artista, a jiboia protege a moradia dos huni kuin originários, localizada dentro do rio Araguaia, de acordo com a mitologia. Os índios que trocaram seu local de origem pela terra firme agora não conseguem voltar, justamente porque a cobra vigia a entrada.

"Lá dentro nós somos imortais. Quando você sai você fica mortal. A cobra nos faz lembrar que somos mortais. E por isso mesmo a gente tem que fazer o máximo possível pela natureza e pelo meio ambiente —proteger o rio, proteger a floresta", diz ela.

A busca de harmonia entre humanos e natureza é um tema constante na arte indígena, como se pode ver em boa parte das 35 telas de Carmézia Emiliano, expostas na galeria do primeiro subsolo. Artista macuxi com mais de 20 anos de carreira, ela tem boa inserção no circuito de Roraima, seu estado de origem, participou de várias bienais de arte naïf do Sesc Piracicaba, em São Paulo, e agora ganha sua primeira individual num museu de grande projeção.

A escada do subsolo do Masp pintada pelo coletivo Mahku - Ronny Santos/Folhapress

Numa das pinturas a óleo, Emiliano representa a dança parixara, um ritual de comemoração da primeira colheita do ano em que várias comunidades agradecem a natureza. Os índios dançam vestidos de roupas de palha, batendo ritmadamente no chão com longos bastões adornados com peixes, corujas e tucanos. Em outra tela, ela desenha mulheres fazendo panelas de barro sob uma oca.

Com estas exposições, o Masp se coloca num circuito atento em valorizar a arte de indígenas, depois de décadas de quase total exclusão dos povos originários das paredes dos museus. Este movimento, que inclui também galerias comerciais e a Bienal de São Paulo, a maior mostra de arte do país, começou antes da pandemia mas parece atingir seu ápice neste ano.

Estão também em cartaz uma mostra de criadores indígenas no Museu da Língua Portuguesa, a primeira exposição solo de Denilson Baniwa na Pinacoteca, e uma mostra de fotos e vídeos feitos por índios do Xingu, no Instituto Moreira Salles, todas em São Paulo. Há poucos meses, a cidade teve a inauguração do Museu das Culturas Indígenas, o primeiro do país feito e conduzido por representantes dos povos originários.

Um dos pontos cruciais deste movimento é que agora os museus abrem espaço para os próprios indígenas se representarem, como vemos por exemplo no autorretrato de Emiliano posicionado na entrada de sua exposição no Masp. Assim, sai de cena o olhar de exotismo que povos originários receberam de artistas brancos.

O outro é que a produção indígena, alheia ao cânone ocidental da arte, passa a ser apresentada para o público como um ente em si, fora da categoria naïf, ou ingênuo em francês, na qual era colocada. Amanda Carneiro, organizadora da exposição de Emiliano, lembra que o rótulo ajudou a artista macuxi e tantos outros a ingressarem no circuito de museus e galerias, então não necessariamente ele será visto como pejorativo pelos criadores.

Por outro lado, diz Carneiro, "termos qualificadores, como primitivo e ingênuo ou arte folclórica, podem ser redutores e preconceituosos, porque, em geral, são atribuídos a artistas indígenas, negros ou pobres, e dizem muito pouco sobre os trabalhos e artistas em si".

Mahku: Mirações e Carmézia Emiliano: A Árvore da Vida

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