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Lucas Brêda

Chorão, morto há dez anos, foi um produto de suas próprias contradições

Líder do Charlie Brown Jr. era fofo e durão na mesma medida, e levou ao rock o malandro bon vivant do samba e do rap

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São Paulo

Dentro de Chorão, o cantor e compositor que fez do Charlie Brown Jr. uma das maiores bandas da história do rock brasileiro, cabiam muitas personalidades. Alexandre Magno Abrão, o homem por trás da persona, morto há dez anos, foi um reflexo das próprias contradições.

É assim que ele é retratado no documentário "Chorão: Marginal Alado", um recorte das cerca de 700 horas de imagens de turnês, estúdio, palcos, participações em programas de TV e momentos de bastidores feitas por Jerri Rossato Lima, que trabalhava com a banda. Pra quem não acompanhou ao vivo a ascensão meteórica do Charlie Brown Jr., é o documento mais abrangente sobre seu líder.

Chorão, o vocalista da banda Charlie Brown Jr., segura skate, no parque do Ibirapuera, em São Paulo (SP), em 2006
Chorão, o vocalista da banda Charlie Brown Jr., segurando skate no parque do Ibirapuera, em São Paulo (SP), em 2006 - Bruno Miranda/Folhapress

Chorão era capaz de compor a mais doce das baladas, fosse falando sobre amor ou filosofando sobre o sentido da vida, ao mesmo tempo que fazia as letras mais sujas da música mainstream brasileira entre o fim dos anos 1990 e o começo da década seguinte. Era assim também na vida real, uma pessoa agressiva e arrogante que também podia ser o mais carinhoso dos amigos, o mais romântico dos namorados.

Ao longo da carreira, protagonizou brigas famosas —com João Gordo, dos Ratos de Porão, Marcelo Camelo, dos Los Hermanos, e os próprios integrantes do Charlie Brown Jr., quando todos eles deixaram a banda. Ao mesmo tempo, tinha o costume de ajudar fãs e funcionários financeiramente, e é lembrado mesmo por desafetos como uma pessoa generosa, e de coração gigante.

Era persistente, exigente e detalhista, tomando a linha de frente de todos os projetos feitos pelo Charlie Brown Jr., atuando também como empresário e patrão de tudo relacionado ao grupo. Era também um tanto desleixado, e chegou a ficar sem dinheiro para botar gasolina no próprio carro.

Em um vídeo que ficou famoso no YouTube, Chorão esculacha Champignon, o talentoso e ágil baixista da formação original da banda, que depois saiu e retornou ao Charlie Brown Jr. Apesar da bronca pública, não é possível afirmar que a relação dos dois não era algo próxima a de irmãos, nem que não havia amor entre eles. Champignon, aliás, tirou a própria vida com um tiro na cabeça apenas seis meses depois da morte de Chorão.

Em "Marginal Alado", João Gordo descreve Chorão como uma pessoa que era "tudo ao mesmo tempo agora". De fato, era o que sua música refletia.

Desde o primeiro álbum, o Charlie Brown Jr. foi um híbrido de rock, hardcore e punk com diversos outros gêneros, do rap ao reggae, passando por composições de pop rock ao violão. Tudo movido à intensidade que era própria de Chorão, desde sempre um poço sem fundo de energia e intensidade.

A sonoridade da banda era produto também das movimentações que aconteciam nos anos 1990. O Planet Hemp, influência admitida de Chorão desde o começo do Charlie Brown Jr., havia aberto o caminho para abordagem de composição mesclando guitarras, baixo e bateria de rock pesado com rimas diretas sobre o dia-a-dia das ruas.

Era uma sonoridade inspirada na música pesada e suingada feita na Califórnia, sendo o Suicidal Tendencies a banda que foi a maior referência para Chorão. Se o Planet Hemp já havia aproximado o rock pesado do skate, do calor e das praias brasileiras, o Charlie Brown Jr. aprofundou essa ligação.

Desde o início, no fim dos anos 1990, a banda tinha músicas para bater cabeça e para fumar um baseado num fim de tarde tranquilo. Ambas de 2000, "Zóio de Lula" era um reggae na sintonia de um sábado letárgico na praia, enquanto "Rubão, o Dono do Mundo" era um rock ligado na tomada, guiada pela voz rasgada de Chorão.

Nas letras, encarnava o malandro bon vivant à margem de uma sociedade capitalista, ecoando de Bezerra da Silva a Racionais MCs, ainda que sem a poética afiada desses dois. "O fato de eu ter tatuado no meu braço ‘marginal’ não quer dizer que sou um marginal que faz várias fitas, que assalta os outros", ele diz em um show exibido pelo documentário. "Quer dizer que estou à margem de muita coisa que acho que é hipócrita, mentirosa. O dinheiro compra muita gente, mas não compra tudo não. Quero que vocês entendam que o melhor que a gente pode ter na vida são as coisas básicas."

Se no palco ele era durão e dono de si, botando fogo nas plateias que comandava, nas letras se mostrava fraco e encarava suas limitações e frustrações, numa sinceridade cortante que podia tanto o aproximar dos fãs quanto fazê-lo soar demasiadamente prosaico e vulgar para uma elite intelectual.

Fazia questão de se colocar contra o establishment, cantava que odiava gente chique e não usava sapato, justamente numa época em que o rock era fagocitado pelo sistema. Se os anos 1990 foram de experimentação e ousadia sonora, os 2000 marcaram o momento em que o rock —especialmente os gigantes dos anos 1980— abraçou os discos acústicos e os violões, num impulso de soar mais palatável para a mídia e para o grande público. Não à toa, bandas como Titãs, Capital Inicial e Kid Abelha ganharam dinheiro como nunca antes.

Em 2003, quando gravou seu "Acústico MTV", o Charlie Brown Jr. já era visto como uma das maiores bandas de rock do Brasil, além de ser informalmente conhecido por ter o show mais animado do país. Seu volume da franquia era o oposto do que os companheiros roqueiros faziam —e não por acaso, um dos mais lembrados até hoje.

A regra era mirar nos sons limpos e cândidos, encher as músicas de orquestras e apostar nas baladas, e o Charlie Brown Jr. fez tudo ao contrário. Chorão andava de skate, falava palavrões e berrava no microfone, chamando ícones do rap como Marcelo D2, Negra Li e RZO e o roqueiro desbocado e irreverente Marcelo Nova para um show veloz, agressivo e energético mesmo sem guitarras distorcidas.

Amado e odiado, Chorão triunfou porque era autêntico, e soube transformar em arte não só seu ego, mas seus medos e contrastes internos. Não foi exatamente subestimado, pois era conhecido nacionalmente e tinha uma legião de fãs, e nem completamente compreendido, pois era visto como um compositor de segunda categoria com uma música barulhenta.

Morreu há dez anos num processo de autodestruição tão intenso quanto sua abordagem da arte. "Não tão complicado demais, mas nem tão simples assim", como cantava na música "Champanhe e Água Benta", em que define sua vida como um filme de Spike Lee.

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