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Gay e conservador, Roberto Piva mostra São Paulo do banheirão em poemas homoeróticos

Poesia do autor, avesso às bandeiras, pode não agradar a gerações que buscam obras lacradoras

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Fotografia de Wesley Duke Lee, do livro 'Paranoia', de Roberto Piva

Fotografia de Wesley Duke Lee, do livro 'Paranoia', de Roberto Piva Divulgação

São Paulo

A cidade que cintila na poesia de Roberto Piva é uma São Paulo no nível da rua. Está nas calçadas que cheiram a bebida derramada, nos mictórios onde ocorrem os encontros fortuitos, na luz vacilante da boate e nos muros dos colégios onde os meninos "bufam como cadelas asfixiadas".

Não é uma São Paulo reta e concreta. Não é a cidade das vigas que furam o céu que vemos nas fotos de Thomaz Farkas ou nos filmes de Luiz Sérgio Person. Embora estivessem todos olhando a mesma metrópole, que em meados do século passado usurpara o posto de miolo pulsante do país, só a de Piva se parece com um purgatório dantesco —daqueles em que o guia do poeta assume a forma de um menino sensual com "cuequinhas em flor".

Retrato de Roberto Piva em 1963
Retrato de Roberto Piva em 1963 - Wesley Duke Lee

Autor que até morrer, em 2010, cultivou uma postura marginal em relação ao cânone, ele tem pela primeira vez toda a sua obra reunida num único livro, "Morda Meu Coração na Esquina", lançado pela Companhia das Letras.

Não deixa de ser inusitado que um dos nomes mais marginais das letras brasileiras agora saia por uma grande editora. A compilação ficou a cargo do professor e crítico literário Alcir Pécora.

Estão no volume os poemas de "Paranoia", a estreia que causou inquietação quando lançada, em 1963. À época, a vanguarda era o concretismo dos irmãos Campos e seus escritos extremamente cerebrais. Quando Piva chegou, influenciado pelo surrealismo de Breton, ofereceu uma resposta dionisíaca a tamanho racionalismo. Ele canta sobre um universo "cuspido pelo cu sangrento de um Deus-Cadela".

Em "Praça da República dos Meus Sonhos", por exemplo, ele topa com García Lorca e Rimbaud e procura Mário de Andrade. Ali, "os meninos tiveram seus testículos espetados pela multidão" e "os mictórios tomam um lugar na luz". Junto de Artaud ou do Marquês de Sade, outras das figuras constantes, ele cai na sarjeta e vê um "anjo de sono quente".

Essa cidade mapeada em torno de "bares, inferninhos e praças do centro velho", como escreve Pécora na introdução, é onipresente em toda a obra. Piva, um paulistano que nunca teve carro, gostava de bater perna e conhecia bem seus recônditos úmidos.

Mesmo antes de estrear na poesia, aos 20 e poucos anos, já tinha alguma notoriedade na boemia paulistana, arrombando festas por aí com amigos selvagens. Costumava dizer que "um poeta experimental precisa ter uma vida experimental".

O escritor e cineasta João Silvério Trevisan diz que não consegue se lembrar exatamente de quando conheceu o amigo —"isso se perdeu na noite dos tempos"—, mas conta que já ouvira falar de seus relacionamentos com outros homens, lá pelo fim dos anos 1960, em tempos em que esse tipo de detalhe só corria à boca pequena. "Ele já era um mito, já frequentava a Galeria Metrópole, point importante da comunidade."

"Muitas vezes enchia a cara, enchia o nariz e me ligava de madrugada para falar de alguma passagem que tinha lido de Dante Alighieri", afirma o autor. Escrevia ao som do jazz, da bossa nova, por isso a poesia dele tinha essa musicalidade, era toda sincopada. Ele era muito junguiano, era o inconsciente que mandava."

Trevisan se recorda de uma saia justa que resume o personagem. Era noite de entrega do Prêmio Juca Pato, que a União Brasileira dos Escritores dedica a quem considera o intelectual do ano. Naquela edição de 1984, o escolhido foi Fernando Henrique Cardoso.

Piva irrompeu na cerimônia, que havia reunido uma boa parte da intelligentsia paulista e, aos berros, soltou: "Se ele é o intelectual do ano, então eu sou o intelectual do ânus."

"Era assim que ele gostava de se comportar", diz. "Ele estava completamente à margem, e cultivava isso. Dizia que a poesia dele era o que sobrava das orgias. E os versos dele são bem autobiográficos."

Pécora, que compilou os poemas no novo livro, divide a obra de Piva em três eixos cronológicos. Na primeira fase, os textos são marcados por um jogo de extremos, por uma "epopeia libertina" em que o sexo tem lugar central, como escreve na introdução.

A ela se segue uma produção mais madura, que celebra o encantamento pelo efebo, isto é, do homem pelo garoto mais novo. "Meu amor dorme & se coça em sonhos se debate & geme/ se debate & geme se debate & geme", escreve o poeta em "Abra os Olhos & Diga Ah!".

Em "Coxas", ele tece um longo poema narrativo que começa com a braguilha do personagem Pólen sendo aberta no topo do edifício Copan e prossegue com suas transas com gente de nome Rabo Louco, Lindo Olhar, Entrega em Profundidade e Coxas Ardentes.

A última fase é xamânica, o que não significa que seja algo exatamente new age. Mas ganham mais espaço referências a animais totêmicos, cactos, alucinações no deserto, uma espécie de etnopoesia que precedeu sua morte, por insuficiência renal. "A serpente/ o gavião/ o jaguar/ me veem/ como seu Duplo" é uma das estrofes de "Tempo de Tambor."

Foi nesses últimos anos de vida de Piva que a jornalista Renata D'Elia o conheceu. Ela era uma estudante universitária, atraída pelos versos dele sobre a noite paulistana, com a "alucinação na ponta dos olhos".

"Ele não tinha uma relação ordinária com a cidade. A São Paulo que aparece nos poemas dele é mágica, seja ela um sonho ou um pesadelo, mas sempre algo do lado de lá do espelho", diz.

Descolou o contato dele pela lista telefônica e foi convidada a bater um papo na casa do poeta, um tipo de beatnik vivendo em plena Santa Cecília, no centro da cidade. As tentativas de entrevista renderam respostas lacônicas, a princípio, e uma convivência intensa.

"Ele era profundamente erudito, dava aulas sobre ervas. Gostava de tirar cochilos embaixo das árvores", diz D'Elia. "E vivia muito duro. Era rompido com a família de fazendeiros do interior de São Paulo."

A jornalista deve lançar ainda neste ano uma reedição, aumentada, de "Os Dentes da Memória", pela editora Córrego. O livro-reportagem, escrito em parceria com Camila Hungria, repassa a trajetória do poeta e de seus colegas de literatura e baderna —Claudio Willer, Antonio Fernando de Franceschi e Roberto Bicelli.

Tanto D'Elia quanto Trevisan acham curiosa a volta à tona da obra de Piva bem em tempos de militância identitária. Ele, um homem gay de ideologia conservadora, tinha aversão a levantar bandeiras. De fato, seus escritos, por mais que transbordem homoerotismo, podem não encontrar eco em gerações para quem toda obra precisa ser lacradora.

"A poesia dele pertence a uma outra tradição", diz a jornalista. "Ele era muito próximo de Pasolini, que via com receio essa legitimação do movimento das minorias por meio do sistema. Piva não se interessava pelo casamento gay porque ele era contra o casamento, porque via a homossexualidade como uma força rebelde, antiestabilishment."

Mas nem mesmo a publicação de sua obra por uma editora grande deve tirar Piva do rol dos autores marginais, na opinião de D'Elia. "Ele só reclamaria de uma homenagem se ela fosse brega."

Morda Meu Coração na Esquina

  • Preço R$ 99,90 (504 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Roberto Piva
  • Editora Companhia das Letras
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