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'Tudo em Todo o Lugar' traduz mente de imigrantes em seus multiversos

Filme feito por millennials mirando novas gerações empilha camadas de questões sociais com linguagem de videoclipe

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Juily Manghirmalani

Mestre em Imagem e Som, formada em audiovisual e estudante de psicologia, é pesquisadora de cinema, cultura e imigrações asiáticas

O vencedor do Oscar de 2023, "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo" é uma obra de ficção científica que tinha tudo para ser um filme B, mas ganhou tamanha visibilidade que foi impossível passar despercebido.

Os Daniels, diretores millennials que destoam dos métodos tradicionais de fazer cinema, fizeram um filme atual, para jovens com mentalidade regada a estímulos simultâneos.

A protagonista Evelyn, vivida por Michelle Yeoh, é gigante em camadas. Mulher de meia idade, responsável pelo sustento da família, traz em si um antagonismo —cuida de tudo e todos, mas é atarefada, pouco empática e ignora os sentimentos do marido e da filha.

Cena do filme 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' - Divulgação

Ela faz referência às mulheres asiáticas imigrantes. Deixou a China para viver o sonho americano, proposto pelo marido, mas logo se percebeu responsável pelo sucesso dessa missão em uma nova cultura.

A casa onde o casal vive, nos fundos da lavanderia de onde eles tiram o sustento, mostra a mistura entre pessoal e profissional e é abarrotada de objetos acumulados, pista da narrativa de escassez que fala sobre a mentalidade de imigrantes que vivenciaram a pobreza e criam uma relação difícil com dinheiro e bens materiais.

O negócio da família está com chances de ser leiloado e é exatamente em uma das visitas à Receita Federal que as dissociações de Evelyn, e as viagens aos multiversos que caracterizam o filme, começam. É nessas camadas que protagonista pode viver as diversas versões da sua vida em que escolhas diferentes foram feitas —o tipo de pensamento que ocorre quando tudo parece estar implodindo.

A partir das dissociações da protagonista, o filme se apropria de diversas linguagens: o multiverso é herança dos heróis geeks, o kung fu chinês com plugs anais traz alusões queer, dedos que viram salsichas adicionam humor, pessoas que se tornam pedras trazem o absurdo, e sobram até referências a outros filmes, como "Ratatouille" e a estética do diretor chinês Wong Kar Wai.

Além dos sonhos perdidos, é possível ler os multiversos como traço da psique de pessoas que processam mais de uma cultura, em um jogo de negociações internas para transitar em realidades contraditórias —o que é aceito em uma, o que é valorizado na outra, quais parâmetros utilizar para ter uma vida aceitável.

É assim que chegamos em Joy, vivida por Stephanie Hsu. Ela é a filha lésbica de Evelyn, já nascida nos Estados Unidos, mas criada pelos pais chineses. Percebemos a tristeza da garota ao longo do filme, sua angústia em ser incompreendida e a vontade de romper com a família.

A jovem é um retrato de muitos filhos de imigrantes. Ela tem dificuldade em falar a língua da família —um dos momentos que permeia filmes LGBTQIA+ de diásporas asiáticas é saber falar "as palavras não-ditas" dentro de casa, como quando Joy tenta falar para o avô que ela tem uma namorada, mas não sabe como dizer isso em cantonês.

Joy em cena do filme 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' - Divulgação

No multiverso, Jobu Tupaki, demônio que ocupa o corpo de Joy, não é exatamente uma figura má. Ela é uma versão filha de Evelyn, inteligente e ambiciosa, mas regida por dor e destruição. Enquanto Joy é uma garota depressiva que só usa roupas escuras, Jobu é uma figura de poder e visual exuberante, mostrando que há vividez quando há auto valor.

Um dos pontos altos é quando Jobu é apresentada e, na cena, fala para o policial americano, uma figura de autoridade que representa os entraves dessa família no país: "não posso estar aqui ou vocês não permitem que eu esteja?".

É quando Evelyn relembra as relações traumáticas com seu pai e percebe que repete com a sua filha o abandono e negação. Uma das belezas do filme é a reconciliação da protagonista consigo mesma, ao se reconhecer detentora de sua própria história e reconciliar suas relações.

Ao fim do filme, Evelyn percebe a estratégia de sobrevivência de seu marido, que usa da gentileza e bondade, e passa a acessar melhor suas emoções. É nessa mudança que o filme chega em sua terceira fase e propõe que nada nessa vida é imutável, seja a relação com a família, com o trabalho e com a sociedade em volta.

"Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo" pode até parecer uma ficção científica cheia de caos e cenas sobre o impossível, mas em algum lugar é também um filme sobre realidades pouco relatadas, de múltiplos universos culturais que geram confusas camadas de sobrevivência, solidão, autoestima racial e geracionais. Dilemas do mundo atual que nem sempre vemos nas grandes telas.

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