Como Eliza Capai filmou a própria perda da gravidez em 'Incompatível com a Vida'

Documentário do festival É Tudo Verdade retrata a dor da gestação interrompida, partindo de relato feito pela diretora

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Incompatível com a Vida

Cena do filme 'Incompatível com a Vida', de Eliza Capai Divulgação

São Paulo

Eliza Capai não gosta de se retratar dentro dos documentários que dirige. Sua carreira expõe esse desejo. O longa "Espero Tua (Re)volta", de 2019, tratava das mobilizações estudantis de 2015. Já a minissérie "Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime", de 2021, revisitava o assassinato do empresário Marcos Matsunaga.

A cineasta começa o novo filme, "Incompatível com a Vida", contando sua posição para cada uma das entrevistadas. Mas, desta vez, é diferente, e, como ela mesma diz, o tema exige que Capai se ponha dentro da história. Até porque a produção, sobre a perda de um bebê, parte da experiência da documentarista.

Cena do filme 'Incompatível com a Vida', de Eliza Capai
Cena do filme 'Incompatível com a Vida', de Eliza Capai - Divulgação

"A gente estava no início da pandemia e, quando engravidei, comecei a me registrar, nunca pensando em trabalho", diz a diretora. "Quando descobri a má formação fetal, além de cair em abismo emocional, me lembro de pensar que esse seria um filme que faria se não fosse a personagem."

A má formação incompatível com a vida é uma complicação da gravidez em que o feto morre, no útero ou depois do parto. O quadro afeta muitas mulheres, mas não é discutido, mesmo que abale o emocional de pacientes e cônjuges.

"Incompatível com a Vida" busca desfazer o tabu. O filme, que está na programação do festival É Tudo Verdade, reconta a experiência de Capai em paralelo às histórias de outras seis mulheres que passaram pela mesma situação —algumas delas anos atrás, outras há pouco tempo.

Segundo a diretora, foi como lidou com o trauma e tratou de um assunto que é escondido pela sociedade no cotidiano.

"Eu entendi que era importante fazer aquilo como documentarista e sinto hoje que me transformei ao me colocar na tela. É uma reflexão interessante, porque é o que as pessoas fazem no documentário social, quando filmam pessoas no momento mais dramático da vida delas."

No Brasil, a interrupção da gravidez só é permitida pela lei em caso de risco de vida à mulher, e pacientes com má formação do feto, incompatível com a vida, são obrigadas a pedir autorização judicial. Em alguns casos, a demora da aprovação pode ser fatal.

Capai fez a interrupção em Portugal, mas diz que o filme foi motivado pela raiva com o assunto. O fato de que uma mulher morre no país a cada dois dias por um aborto a ajudou a terminar o seu filme.

"Eu tive complicações durante a interrupção da minha gravidez em Portugal, fiquei internada uma semana. Se tivesse acontecido no Brasil, estaria morrendo."

A busca pelas entrevistadas também foi afetada pelas questões nacionais. A diretora queria conversar com mulheres de todas as classes sociais, mas os arquivos dos hospitais não foram suficientes.

"Mulheres de baixa renda e do interior em geral não chegam a receber o diagnóstico porque não fazem um ultrassom de qualidade", diz. "Entendi uma camada ainda mais cruel das nossas políticas públicas. Só encontramos essas mulheres quando fizemos publicações nas redes sociais."

Capai não acha que a mudança de presidente vá avançar a discussão sobre o tema no Brasil, por causa do domínio conservador. Mas diz que torce para o filme ampliar os debates. Em especial porque "Incompatível com a Vida" escapa da lógica educativa que cerca o assunto no cinema.

O documentário mistura os registros pessoais da diretora e as entrevistas com momentos oníricos. Em uma cena, há uma mulher que mergulha nas profundezas do mar; pouco depois, outra mulher é vista de costas, sentada na janela de prédio no meio da cidade.

Segundo a diretora, essas encenações traduzem o momento de dor profunda de quem passa pela perda de um bebê. Ela diz saber que o filme é uma experiência dolorida, mas afirma que isso é parte do processo de cura.

"Li um livro em espanhol que fala da necessidade de encarar o feto e a própria história, senão a dor não passa. Isso é uma questão de traumas em geral, e podemos abrir para a política brasileira, da ditadura à pandemia. Temos que encarar os fatos, senão pelo resto da vida vamos ter gatilhos com questões parecidas."

Incompatível com a Vida

  • Quando No sáb., 15/4, às 20h30, no Cine Marquise, e no qua., 19/4, às 19h, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo; na ter., 18/4, às 20h, no Net Botafogo, e na qua., às 18h, no Net Rio, no Rio de Janeiro
  • Classificação 16 anos
  • Produção Brasil, 2023
  • Direção Eliza Capai
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