Paul Gauguin tem pinturas revistas em mostra no Masp em meio a seu cancelamento

Exposição em São Paulo adota tom crítico ao resgatar telas de mulheres taitianas nuas feitas pelo artista francês do século 19

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'Pobre Pescador', pintura a óleo de de 1896 de Paul Gauguin que faz parte da coleção do Masp desde 1958

'Pobre Pescador', pintura a óleo de de 1896 de Paul Gauguin que faz parte da coleção do Masp desde 1958 João Musa/Divulgação

[RESUMO] Mostra no Masp questiona a objetificação dos corpos femininos e o imaginário do exótico nas pinturas de Paul Gauguin, artista francês do século 19 que passa agora por um processo de reavaliação de sua obra e vida por museus em meio à cultura do cancelamento estabelecida nos últimos anos.

Numa noite de 1952, a elite carioca se reuniu na Gávea para celebrar um quadro recém-chegado ao Brasil. Era um autorretrato de Paul Gauguin, artista francês que havia morrido meio século antes sem saber quão influente sua obra seria nas vanguardas europeias do século 20 —nem que suas pinturas de menores de idade nuas virariam tema de debate quente em meio à cultura contemporânea do cancelamento.

Em "Autorretrato (Perto do Gólgota)", um óleo sobre tela pintado em 1896, Gauguin se representa como Jesus Cristo às vésperas da morte, de bigode e cabelos compridos, vestindo uma túnica azul-clara, à frente de uma cena de crucificação que acontece sobre um morro.

Autorretrato (perto do Gólgota), pintura a óleo de Paul Gauguin, parte da coleção do Masp desde 1952
Detalhe de 'Autorretrato (Perto do Gólgota)', pintura a óleo de 1896 de Paul Gauguin - João Musa/Divulgação

Apesar da dramaticidade, quando criou esse quadro o artista vivia em seu paraíso particular, por assim dizer. Naquele ano, o pintor havia trocado Paris pelas águas translúcidas, vegetação verde exuberante e pôr do sol de cartão postal do Taiti —um "paraíso desconhecido da Oceania", como escreveu em seu diário.

Foi primeiro no Taiti, e mais tarde, na ilha remota de Hiva Oa, também na Polinésia Francesa, que Gauguin fez algumas de suas obras mais conhecidas, entre elas pinturas de suas amantes de 13 ou 14 anos de idade e o autorretrato que era celebrado naquela noite no Rio de Janeiro, antes de ser doado ao Masp, o Museu de Arte de São Paulo.

Uma vez no museu da avenida Paulista, o autorretrato passou décadas exposto junto a outros trabalhos de cânones da arte ocidental. Mas, a partir da próxima sexta-feira, dia 28, a tela vai deixar a galeria onde é mostrada e passará a integrar uma exposição de viés crítico sobre Gauguin, o que deve trazer novas possibilidades de leitura à obra.

"Paul Gauguin: O Outro e Eu", mostra que o Masp inaugura nesta semana, reúne autorretratos, paisagens e as controversas representações das mulheres do Taiti feitas pelo artista nos seus últimos anos de vida. São 40 obras, entre pinturas e gravuras, numa exposição com duas telas do museu e as demais emprestadas de instituições como o Museu d’Orsay, de Paris, o Instituto de Artes de Chicago, a Tate Gallery, de Londres, e o Metropolitan, de Nova York.

Inteiramente pensada e executada pela equipe do Masp, a exposição propõe uma dupla problematização —a da relação de Gauguin com os outros e a do seu imaginário sobre os trópicos. "A mostra vai enfrentar o problema da alteridade em Gauguin. Esse outro, para um artista europeu, branco, numa posição de poder como ele estava, era o povo da ex-colônia francesa, as mulheres que viviam na Polinésia Francesa. A leitura dele era a do exotismo, e no caso das mulheres havia uma sexualização e uma objetificação desses corpos", afirma Fernando Oliva, um dos organizadores da mostra.

Por exemplo, na pintura "Duas Taitianas na Praia", uma das personagens tapa os seios com um dos braços, enquanto em "Palavras do Diabo" a retratada cobre a genitália com algo que se assemelha a um pano branco. A litografia "Manao Tupapau" mostra a amante de 13 anos de Gauguin deitada sem roupa. Em geral, suas musas têm a pele morena ou negra, e não branca.

Também poderá ser visto o óleo "Duas Mulheres Taitianas", uma das primeiras pinturas do artista a ser questionada criticamente a partir de um ponto de vista feminista. Nessa tela, uma mulher de frente segura uma bandeja com pedaços de manga madura junto aos seu seios desnudos, e a seu lado outra mulher oferece um dos seios ao espectador.

No início dos anos 1970, ou seja, há meio século, a historiadora de arte americana Linda Nochlin usou uma sátira para questionar o aspecto machista da pintura, ao colocar a obra ao lado de uma fotografia de um homem nu, posando com um prato de bananas junto a seu pênis.

"A piada visual de Nochlin expôs as operações de gênero do olhar na arte erudita. Também nos disse talvez tanto sobre nós mesmos quanto sobre Gauguin —sobre até que ponto as mulheres, assim como os homens no século 20, passaram a aceitar o olhar sexualizado e possessivo do homem sobre a mulher como integral na definição que o patriarcado deu à arte erudita e à grandeza cultural universal", escreveu Norma Broude, uma das principais estudiosas de Gauguin, no seu livro "Gauguin’s Challenge", ou o desafio de Gauguin, publicado há cinco anos.

Pintura a óleo 'Duas Mulheres Taitianas', de Paul Gauguin
Pintura a óleo 'Duas Mulheres Taitianas', de Paul Gauguin - Divulgação

Filho de um jornalista francês e de uma escritora de origem peruana, Gauguin nasceu em Paris, em 1848. Quando criança, morou em Lima, no Peru, antes de retornar para a França. Jovem adulto, entrou para a Marinha e navegou por mares do Brasil, do Caribe e do Mediterrâneo. Em seguida, virou corretor de valores em Paris, época na qual começou a pintar no tempo livre e a colecionar pinturas impressionistas.

Ele viria a se dedicar integralmente às artes depois da quebra dos mercados de 1882, quando foi demitido de seu emprego e abraçou a pintura, sob orientação do impressionista Camille Pissarro. Contudo, logo se cansaria do meio das artes parisiense e buscaria uma mudança.

Primeiro, foi para a Bretanha, região rural no norte da França onde criou uma escola de arte com outros pintores que se inspiravam no bucolismo do campo. Depois, dividiu uma casa com Vincent van Gogh em Arles, no sul francês, em dois meses de uma convivência turbulenta que culminaram no famoso episódio no qual o holandês cortou a própria orelha.

Entre uma mudança e outra, Gauguin se deixava seduzir pelas lendas dos mares do sul. Ele ouvia relatos sobre a suposta vida de espírito livre nos trópicos e, como um homem francês do fim do século 19, estava imerso no imaginário cultural de um país colonizador que qualificava os habitantes dos territórios dominados como selvagens. O Taiti, uma dessas colônias, o atraiu.

"Estou partindo para ter paz e tranquilidade. Livrar-me da influência da civilização. Quero fazer apenas arte simples, muito simples, e para conseguir fazer isso preciso estar imerso na natureza virgem, não ver outros que não os selvagens, viver como eles", escreveu Gauguin numa carta.

Sua visão idílica dos trópicos não durou muito. Para começo de conversa, muitas mulheres estavam vestidas com figurinos impostos pelos missionários cristãos colonizadores. Ele também enfrentava problemas financeiros, dado que havia virado as costas para a cena artística francesa e tinha dificuldade para vender seus trabalhos. Afora isso, lidava com o alcoolismo e com a sífilis, doença que o mataria aos 54 anos.

A miséria pessoal, contudo, não impediu que ele fizesse, nos seus oito anos na Polinésia, alguns de seus trabalhos mais conhecidos. Suas pinturas daquele período são marcadas por manchas de cor e superfícies achatadas, estilo que influenciaria Pablo Picasso e Henri Matisse, por exemplo. Ele também produziu gravuras, desenhos e cerâmicas.

"Paul Gauguin: O Outro e Eu" acontece na onda de exposições que procuram reavaliar o trabalho do artista. Foi o caso de uma mostra de retratos na National Gallery de Londres, em 2019. Quando essa exposição foi montada em Ottawa, no Canadá, seus organizadores mudaram os textos de parede e legendas de algumas obras depois que ela já estava aberta ao público, para deixar clara a dinâmica de poder envolvida na relação de Gauguin com as jovens taitianas, segundo uma porta-voz do museu disse ao site Artnet.

Como se vê, museus importantes de vários países estão respondendo à altíssima sensibilidade dos tempos acerca de questões de gênero, raça e colonialismo, e parece não haver mais espaço para mostras de Gauguin —ou de outros grandes nomes— que se concentrem apenas nos aspectos formais de suas obras.

Broude, a pesquisadora, vai contra a corrente e questiona a sanha canceladora a atingir Gauguin. Ela defende que se crie para ele uma visão multifacetada. Por email, afirma que, se as críticas feministas ao trabalho do artista nos deram uma nova compreensão sobre a conexão entre as estruturas patriarcais e colonialistas em seu trabalho, por outro lado o público deixou de compreender quem ele realmente era, com suas complexidades como artista e ser humano do fim do século 19.

"Na câmara de eco da internet, com seu gosto por rótulos genéricos, Gauguin agora é denunciado como um mulherengo predador, um agente do colonialismo e até um agressor sexual cuja arte deveria ser ‘cancelada’. Essa imagem está se estabelecendo no pensamento popular crítico, apesar dos recentes esforços de acadêmicos que desafiam esse alinhamento de Gauguin a um conjunto de valores patriarcais que, agora sabemos, ele denunciou abertamente."

Broude se refere a um aspecto pouco abordado no debate público acerca da biografia do artista —a influência das ideias progressistas de Flora Tristan, a avó de Gauguin, sobre o neto. Uma pioneira socialista e ativista feminista na França do início do século 19, Tristan lutou pelos direitos das mulheres e dos trabalhadores. "Suas ideias radicais, defendendo o empoderamento das mulheres, eram ideias que Gauguin conhecia, compartilhava e em que se baseava, tanto em seus escritos quanto em sua arte", afirma a pesquisadora.

Segundo ela, em seus escritos Gauguin apresentou posições liberais sobre algumas questões centrais enfrentadas pelas mulheres da época, como as causas sociais da prostituição e as leis punitivas que regiam o casamento e o divórcio e que restringiam as oportunidades das mulheres. O artista defendeu o direito das mulheres de encontrar felicidade e independência fora do casamento. Também se voltou contra a corrupção do governo colonial no Taiti e seus maus-tratos à população indígena em geral e às mulheres taitianas em particular.

Quando a mostra do Masp abrir, o público já vai chegar preparado para lidar com questões espinhosas que a obra de Gauguin pode suscitar. Diante desse cenário, Oliva, o curador, faz a ressalva de que é necessário não reduzir o trabalho do artista a um tratado etnográfico.

O risco, ele afirma, é de os visitantes esquecerem que o que se vê nas paredes do museu são pinturas, não documentos de época. "A gente tem que tomar cuidado para não criar uma falsa ideia de que Gauguin estava tentando representar uma realidade antropológica. A obra dele é uma fantasia, uma construção."

Paul Gauguin: O Outro e Eu

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