Descrição de chapéu Festival de Cannes

'A Flor do Buriti' leva krahôs às telas de Cannes em ode a uma história em risco

Longa brasileiro na mostra Um Certo Olhar mira conexões de indígenas com a natureza, a política e o mundo espiritual

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Cannes (França)

Empunhando um maracá, Francisco Hyjnõ Krahô preencheu a sala Debussy, no Palácio dos Festivais de Cannes, com o som do instrumento tradicional de seu povo. No palco, foi sintético ao se dirigir à plateia: "Vocês verão o que está acontecendo no Cerrado, verão essas imagens". Minutos depois, em close, o mesmo maracá surgiu na telona, na abertura de "Crowrã", ou "A Flor do Buriti".

O filme dirigido por Renée Nader Messora e João Salaviza está em competição na Um Certo Olhar, mostra que deu à dupla o prêmio do júri em 2018 por "Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos", também feito com indígenas krahô.

Cena do filme 'A Flor do Buriti'
Cena do filme 'A Flor do Buriti' - Divulgação

Se o filme anterior via os riscos de destruição e apagamento das tradições indígenas na aurora do bolsonarismo, "A Flor do Buriti" encara as consequências dessa era, conciliando o registro de uma aldeia em Tocantins e discursos políticos diretos, com Sônia Guajajara, hoje ministra dos Povos Indígenas, culminando nos protestos de diversos povos em Brasília, em abril de 2022.

Ao explorar as fronteiras entre documentário e encenação, o longa avalia a linha que separa os protagonistas dos "cupe", os não indígenas. Não à toa, Hyjnõ, ou seu personagem, guarda a porteira da estrada que liga a cidade ao seu território. Tenta ser diplomático, mas se impõe ao flagrar contrabandistas que escondem araras na mochila.

A conexão com a natureza é fundamental. Pássaros e um simpático filhote de tamanduá são tão relevantes para a comunidade com as plantas, tanto usadas em rituais como servem de ponte para um terceira fronteira, a espiritual. É para um buriti que Hyjnõ pedirá conselhos e evocará seus ancestrais.

Jotàt, sua jovem sobrinha, também luta nesse plano espiritual —tem sonhos estranhos que, segundo a tradição, afastam o espírito de seu corpo e sugerem sua vocação como xamã. Mais do que um desafio psicanalítico (e a simbologia dos sonhos é tema frequente nos diálogos), esse desencarnar a aproxima de seus ancestrais.

Equipe do filme 'A Flor do Buriti' durante sessão de estreia do filme no Festival de Cannes
Equipe do filme 'A Flor do Buriti' durante sessão de estreia do filme no Festival de Cannes - Paula C. Ferraz/Divulgação

Como a aldeia dos mortos do título anterior, as visões de Jotàt se confundem com flashbacks que mencionam a Guarda Rural Indígena, sangrenta milícia criada da ditadura militar, a ineficiência da Funai e um massacre nos anos 1940, comandado por um fazendeiro da região. Uma das poucas sobreviventes foi Crowrã, vó de Hyjnõ, e que tem o mesmo nome de sua esposa.

A reencenação dessa tragédia encanta pelo apuro estético e histórico, recorrendo a uma densa nuvem de fumaça que envolve os atores e transforma em metáfora a persistência desses ancestrais. "A história não acaba", diz o narrador, ainda que bois (e homens) sigam pisando e destruindo essas terras.

Messora e Salaviza acertam ao retratar também as fragilidades e medos desse povo. Logo no começo do filme, uma criança tenta espantar um boi da aldeia, mas teme que o animal se revolte se for atingido no olho. Uma outra jovem acha que isso vai assustá-lo de vez. A flecha fica em suspensão, apontada diretamente para a câmera.

Duas soluções caminham juntas —Patpro, irmã de Hyjnõ, se encanta pela militância institucional, enquanto sua filha se afasta cada vez mais do mundo "cupe". Mesmo com as incertezas e perigos, o filme termina com uma nota esperançosa, com fé de que essas histórias sejam imortalizadas algum dia.

Curiosamente, a temática indígena brasileira também apareceu no festival em "Eureka", primeiro filme do argentino Lisandro Alonso desde "Jauja", de 2014.

Cena do filme 'Eureka', de Lisandro Alonso
Cena do filme 'Eureka', de Lisandro Alonso - Divulgação

A história, conduzida com serenidade e longos silêncios por duas horas e meia, vai de um faroeste com Viggo Mortensen em preto e branco, passando pela história de uma policial do povo Oglala Lakota, um dos locais mais pobres nos Estados Unidos dos dias atuais, até culminar numa viagem no tempo para o Brasil do final dos anos 1970, sob o governo Geisel, seguindo um indígena de uma seita em que todos se reúnem para narrar seus sonhos.

Vago e bastante aberto a interpretações, o filme exibido fora de competição dá conta de costurar questões como a depressão e o suicídio entre indígenas, o animismo, a transformação de humanos em animais mágicos, o garimpo ilegal e as possibilidades infinitas do cinema —o que sempre valorizou seus trabalhos.

"O tempo é uma ilusão", afirma um dos personagens. Então, talvez não seja proibido dormir durante a obra, como fizeram alguns espectadores na sessão com a presença do cineasta e do elenco.

Seja embuste ou gênio, Alonso sempre apresenta um enigma que vai além de nós mesmos. E a surpresa de encontrar o Brasil fora de um filme brasileiro basta para lembrar que nossas histórias não estão isoladas do mundo.

O jornalista viajou a convite da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo

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