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02/08/2011 - 08h30

Jo Nesbo: "Pensávamos na Noruega como sendo virgem"

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JO NESBO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Alguns dias atrás, antes do atentado a bomba aqui e do massacre na ilha de Utoeya, um amigo e eu estávamos conversando sobre como a alegria de estar vivo sempre parece andar lado a lado com a tristeza pelo fato de que as coisas mudam.

Nem sequer o mais brilhante dos futuros pode compensar pelo fato de não haver caminhos que nos levem de volta ao que aconteceu antes _à inocência da infância ou à primeira vez em que nos apaixonamos.

Não existe estrada de volta ao cheiro dos meses de julho de quando eu era jovem e pulava do alto de uma pedra para dentro da água gelada de um fiorde norueguês, feita de neve derretida.

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Nem uma estrada que retorne ao momento em que, aos 17 anos de idade e com dez francos no bolso, eu estava de frente para o mar em Cannes, na França, vendo dois homens adultos trajando uniformes brancos idiotas, remando um barco que trazia uma mulher e seu poodle de um iate para a praia. Percebi então, pela primeira vez, que a sociedade igualitária da qual eu vinha era a exceção, e não a regra.

Tampouco há uma estrada de volta à primeira vez em que eu, estarrecido, olhei para os guardas com armas automáticas que cercavam o prédio do Parlamento de outro país _algo que me fez abanar a cabeça com um misto de resignação e satisfação, pensando "no lugar de onde eu venho, não precisamos desse tipo de coisa".

Durante muitos anos, pareceu que nada mudara na Noruega.

Você podia deixar o país por três meses para percorrer o mundo, passando por golpes de Estado, assassinatos políticos, situações de fome coletiva, massacres e tsunamis, e, ao voltar para casa, constatar que a única coisa que tinha mudado nos jornais eram as palavras cruzadas.

Era um país onde as necessidades materiais de todo mundo eram supridas. O consenso político era avassalador; as discussões eram voltadas principalmente a como alcançar as metas sobre as quais todos já estavam de acordo.

Divergências ideológicas só começaram a aparecer quando a realidade do resto do mundo começou a nos invadir, quando uma nação que até os anos 1970 tinha sido feita em grande parte de pessoas com as mesmas origens étnicas e culturais precisou decidir se seus novos cidadãos deveriam ser autorizados a usar o hijab e construir mesquitas.

Mesmo assim, até sexta-feira pensávamos em nosso país como sendo virgem, não maculado pelos males da sociedade. Um exagero, é claro. Mas que não deixava de ter sua razão.

Em junho, eu estava andando de bicicleta em Oslo com o primeiro-ministro norueguês, Jens Stoltenberg, e um amigo comum nosso.

Estávamos saindo para fazer uma caminhada numa encosta de montanha coberta de floresta nesta cidade grande, porém pequena. Dois guarda-costas nos seguiam, também de bicicleta.

Quando paramos no farol vermelho de um cruzamento, um carro parou ao lado do primeiro-ministro. O motorista gritou pela janela aberta: "Jens! Há um garotinho aqui que acha que seria legal dizer oi a você".

O primeiro-ministro sorriu e apertou a mão do menininho no assento do passageiro. "Oi, eu sou Jens."

O primeiro-ministro usando seu capacete de ciclista, o garotinho com seu cinto de segurança; os dois pararam diante do farol vermelho.

Os guarda-costas tinham parado a uma distância discreta, mais atrás. Sorrindo. É uma imagem de segurança e de confiança mútua.

Uma imagem da sociedade comum, idílica, que todos nós víamos como algo natural e garantido. Como poderia alguma coisa dar errado? Estávamos usando capacetes e cintos de segurança e estávamos obedecendo às regras do trânsito.

É claro que alguma coisa poderia dar errado. Alguma coisa sempre pode dar errado.

Na noite de segunda-feira, mais de 100 mil cidadãos se reuniram nas ruas para chorar as vítimas dos ataques.

A imagem foi marcante. Na Noruega, "conservar a calma" é uma virtude nacional, mas "manter um coração inflamado" não é.

Mesmo para aqueles de nós que sentimos aversão automática à autoglorificação nacional, às bandeiras, aos discursos grandiloquentes e às multidões grandes e expressivas, uma impressão indelével é causada quando as pessoas se manifestam para mostrar que essas ideias e esses valores da sociedade que nós herdamos e que mais ou menos vemos como sendo garantidos e certos significam alguma coisa, sim.

A multidão significava que nós, noruegueses, nos recusamos a deixar que alguém nos roube nosso senso de segurança e confiança. Que nos recusamos a perder esta batalha contra o medo.

No entanto, não existe estrada de retorno a como as coisas eram antes.

Ontem, no trem, ouvi um homem gritando em fúria. Antes da sexta-feira passada, minha reação automática teria sido me virar, talvez até mesmo chegar um pouco mais perto.

Afinal, poderia ser uma desavença interessante que me faria sentir a tentação de tomar partido de uma parte ou da outra.

Agora, porém, minha reação automática foi olhar minha filha de 11 anos para ver se ela estava em segurança, procurar uma rota de fuga para o caso de o homem ser perigoso.

Eu quero acreditar que esta nova reação se suavize com o tempo. Mas já sei que ela nunca vai desaparecer por completo.

Depois que a bomba explodiu --uma explosão que senti em minha casa, a mais de 1,6 km de distância-- e que as notícias do massacre na ilha de Utoeya começaram a chegar, perguntei à minha filha se ela estava assustada.

Ela respondeu citando uma frase que eu lhe dissera certa vez: "Sim, mas, se a gente não sente medo, não pode ter coragem".

Logo, se não existe caminho de volta a como as coisas eram antes, ao destemor ingênuo daquilo que estava intocado, existe, sim, um caminho para seguir em frente. Para sermos corajosos.

Para continuarmos como antes. Para virarmos a outra face enquanto perguntamos: "É só isso?". Para nos recusarmos a deixar que o medo mude a maneira como construímos nossa sociedade.

JO NESBO é escritor norueguês, autor de "A Estrela do Diabo" (Record), entre outros

Tradução de CLARA ALLAIN

 

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