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18/11/2012 - 08h00

Paulo Henriques Britto, 30 anos de poesia

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NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há um poema de Manuel Bandeira, de nome "Gesso", em que uma estatuazinha de gesso inadvertidamente partida é sentida como mais tocante e viva depois de recomposta. O poema de Bandeira vem à mente, por contraste, na leitura do mais recente livro de poemas de Paulo Henriques Britto, "Formas do Nada" [Companhia das Letras, 80 págs., R$ 32], no qual os cacos do que se quebrou, quando reunidos, não passam de "somatório de peças discretas", como diz um dos poemas. O mote pode estender-se aos demais livros do autor, desde pelo menos "Mínima Lírica" (1989), publicado quando ele ainda não era um dos mais respeitado tradutores literários em atividade no país.

Daniel Marenco/Folhapress
O poeta, tradutor e professor carioca Paulo Henriques Britto em sua casa, no Rio
O poeta, tradutor e professor carioca Paulo Henriques Britto em sua casa, no Rio

Mas caracterizar sumariamente sua poesia dessa maneira não quer dizer que ela aposte na técnica do fragmento ou no tom lacunar. Ao contrário, em "Formas do Nada" e nos demais livros de Britto, os poemas são de tal modo amarrados, bem resolvidos e convictos de suas afirmações ou negações, que seu desmembramento é um desafio.

ESQUELETO

Acontece que esse todo tão encaixado não tem a pátina viva dos remendos artesanais do gesso de Bandeira; seria mais como um esqueleto inteiro de que se podem ver os ossos, um a um, e que, apesar das partes visíveis, guarda a ideia de sustentação, sem o recurso da pura colagem.

O mosaico resultante da reunião dessas partes nunca é mais do que "os dias a amontoar-se" ou o "amontoar-se dos dias", sem "padrão, nem projeto, nem destino". As partes que compõem os poemas, além e aquém de formarem um todo, mantêm-se ainda propriamente como partes: ruínas de sentidos, fracassos de projetos.

Se, como afirma Antonio Cicero em "Poesia e Filosofia", os poemas são os mais escritos dos escritos, já que neles ocorre a maior coincidência possível entre o que se diz e o modo de dizê-lo, a poesia de Britto está entre os mais escritos dos mais escritos.

A negatividade de que se reitera a cada livro do autor é como que duplicada na matéria mesma da linguagem: seca, firme, extremamente controlada, contundente e final, mecânica e exata, como o beijo do poema "Noturno" (de "Mínima Lírica").

Desde então, passando por cinco livros --o primeiro, "Liturgia da Matéria" (1982, depois incluído em "Mínima Lírica"), mais "Trovar Claro" (1997), "Macau" (2003), "Tarde" (2007) e "Formas do Nada" (2012)-- o que sobressai é uma depuração da ironia, da descrença em qualquer espécie de totalidade e o surgimento de algo como uma linguagem do nada.

É como se, aos poucos, o nada fosse tomando voz e passasse a falar em primeira pessoa. Em cerca de 30 anos, passa-se de um olhar sobre o desencanto à voz do próprio desencantamento. Nos cinco livros, mas com maior carga e intensidade em "Formas do Nada", a poesia de Britto se dirige a um "você", tratado ora como um crédulo iludido, ora como um pobre coitado ou ainda alguém merecedor do vazio que inevitavelmente aguarda a todos: "o que você fizer não muda coisa alguma"; "chegou ao final / um processo previsível, perverso,/ trivial, que reduziu o universo/ a uma bolinha de papel, da qual/ você se livra com um peteleco"; "todo e qualquer passado [...] / vai pouco a pouco virando uma espécie / de bala que se chupa com deleite, / mesmo se azeda. Isso, chupe. Aproveite."; "Naquele tempo você ria à toa, / você lembra. Você ainda era vivo"; "essa lenda, essa fábula / sem moral nenhuma, é você"; "Resolução? Final feliz? Esquece.", dentre inúmeros outros exemplos espalhados pelos cinco livros.

É como se esse eu que se dirige de forma algo superior a esse "você" pasmado, fosse não o eu-lírico ou o eu do poeta, mas o eu do próprio desencanto, do poema desacreditado de si, dirigindo-se ao seu mísero leitor.

TANTO FAZ

Não é diferente o sentido de outra recorrência na poesia de Britto: o "tanto faz". São muitas as variações dessa construção que desdenha, de forma paradoxalmente precisa e casual, daquilo que o poema mesmo por vezes afirma ou anuncia: "etc."; "etc. e tal"; "ou coisa que o valha"; "não faz mal"; "é isso"; "tanto faz"; "hm, pode ser"; "não que tenha alguma importância"; "bem que eu falei"; "dá no mesmo". Sua poesia é grave, mas até mesmo a gravidade não é levada a sério, porque sempre pontuada, aqui e ali, por esses comentários derrisórios que introduzem o humor e a ironia no ceticismo.

Desse distanciamento, até da própria dor, deriva a leveza inexplicável dessa poesia que, se dependesse de seu objeto, deveria ser tão pesada. É como se Britto apostasse suas fichas com o acaso, mas com o claro fito de perder. E o acaso --controlado, decerto-- quase sempre ganha, dando à sua poesia uma dicção que, em função dessa presença, não é jamais dramática, mas seriamente exata.

Não chega a ser leve, mas nunca é pesada, deixando, de vez em quando, escaparem até algumas possibilidades, não de sentido (o que seria excessivo), mas de um sonho ligeiro. É o que acontece, por exemplo, nos poemas "Fábula", e na variação de número III da série "Oficina" (ambos de "Formas do Nada"). Nesses dois poemas, a música, ora pela flauta de Hamelin, ora revelando o irrelevante, desvia a palavra de seu destino bruto e retilíneo.

A métrica milimétrica, as rimas que chegam a ser irônicas de tão precisas (rima-se "míngua" com "domingo, a" "suéter" com "etc." e "schadenfreude" com "androide"), as formas antigas (sonetos, variações, trípticos, canções), no lugar de libertarem as palavras de seu uso banal e lançarem-nas no universo rítmico da poesia, parecem, em "Formas do Nada", prenderem-nas como numa camisa de força. É como se as palavras estivessem presas às formas precisas desse nada, envolvidas por grilhões que misturam, de forma única na poesia brasileira recente, classicismo e desencanto.

Diferentemente de Antonio Cicero, por exemplo, que utiliza as mesmas formas clássicas em nome do elogio ao agora, à cidade e aos sentidos, em Britto nem a contingência salva. "Resta o desejo (que se não cresce/ por outro lado também não míngua)/ de estender frágeis teias de aranha/ tecidas com os detritos da língua./ Uma ocupação inofensiva:/ quem cai na teia sequer se arranha./E a maioria se esquiva.)"

Essa seria uma possível explicação (mas quem está em busca de explicações não vai encontrá-las em "Formas do Nada") para uma questão algo ingênua, mas inevitável: por que o poeta insiste em escrever para dizer que não há nada a ser escrito? É evidente que tal questão não teria escapado à mira metalinguística da poesia de Britto: "Escrever é preciso. Por quê? Não vem ao caso./ E faz sentido? Não. Não faz sentido."

KAFKA

Numa de suas frases mais conhecidas, Kafka dizia que "há esperança, sim. Mas não para nós." Kafka, que nunca praticou literatura do absurdo, mas somente a linguagem do realismo, certamente diria com Britto: "Tudo faz sentido, ainda que não, talvez, um que se entenda". Não há enigmas a serem decifrados e a poesia, alijada de seu papel tradicional de reveladora ou propositora de enigmas, resta mais mecânica do que simbólica.

Percebem-se claramente os artifícios utilizados por Britto em seu ofício e muitas vezes a sensação é a de ler um livro a partir de seu avesso, como se fosse possível, numa roupa, observar a costura, os nós, os pontos falsos. Mesmo com destreza e técnica extraordinárias, os poemas de "Formas do Nada" não as ostentam, porque se voltam sobre si mesmos, confessando-se como artefatos linguísticos, quase se oferecendo à descostura.

Mas o nada está muito fina e competentemente envolto por essas teias de aranha e não há truque: está tudo entregue, revelado e, mesmo assim, não há o que festejar. A finalidade sem fim, de Kant, a arte como exercício desinteressado --o que explica a singularidade da linguagem estética em relação às outras linguagens-- em Britto coincide desafortunadamente com o "fim sem finalidade": "Avança sem pausa/rumo à conclusão./a qual é um fim/sem finalidade./E termina assim./Pronto. Já vai tarde".

O leitor pode se sentir desanimado e manter a pergunta: por que ler, com tanta competência, que eu não sirvo para nada, que o fim está ali na esquina em meu aguardo? Esse mesmo topos que diz que nada se pode dizer; que gira uma chave eternamente em falso; que nega convictamente o sentido de qualquer ilusão e que desfaz displicentemente do leitor, não apresenta quase nada de novo.

Paul Celan, Franz Kafka, Samuel Beckett, para citar alguns poucos, já falaram sobre isso. Mas na arte, o que conta não é dizer o novo (mesmo porque, segundo o próprio Britto, ele não existe), mas dizê-lo de forma nova.

Seria uma espécie de ética do novo, em que, paradoxalmente, para viver melhor (possível finalidade da ética), sugere-se uma forma nova de conhecer o que já se sabe. "Originalidade não tem vez nesse mundo/ não caia nessa: é sempre a mesma coisa."

Mas é aqui, justamente, nessa afirmação precisa, casual ("não caia nessa"), brasileira, de dicção clássica, grave e leve, trágica e irônica, horaciana, drummondiana e leminskiana, que desponta a novidade de Britto, especialmente em "Formas do Nada".

Já em "Macau", seu penúltimo livro, numa seção de nome "Fisiologia da Composição", em paródia explícita ao famoso "Psicologia da Composição", de Edgar Allan Poe, ouve-se a voz da matéria falando. São as palavras que, desgarradas de seus sentidos, restam desassossegadas e se reúnem quase autonomamente.

Aqui, em "Formas do Nada", por causa, mas também a despeito de seu autor --que só faz "amarrar um barbante ao redor do nada e capturar um deus menor"-- quem nos fala, de forma única, é o próprio nada, que, se não nos atrai, é, entretanto inescapável pela forma com que se apresenta.

 

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