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25/11/2012 - 08h00

Um obituário do estádio do Maracanã

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ALVARO COSTA E SILVA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O estádio do Maracanã se impôs como um dos principais símbolos da cultura brasileira no século 20. Recentemente implodido para ser reconstruído para a Copa de 2014, apesar de tombado pelo Patrimônio Histórico, o estádio deixa marcas na memória de uma geração de esportistas, artistas, escritores e jornalistas.

*

O que haverá de sentir aquele --craque ou perna-de-pau-- que marcar o primeiro gol do novo Maracanã? Didi, que fez o gol inaugural do velho estádio, sentiu desconfiança. "Isso vem abaixo", profetizou. Era o dia 17 de junho de 1950, uma semana antes do início da Copa do Mundo, e enfrentavam-se as seleções de novos do Rio e São Paulo, com portões franqueados ao público e 3 a 1 para os paulistas.

Cerca de 200 mil pessoas viram Didi, aos 9 minutos do primeiro tempo, tabelar com Silas, seu companheiro no Fluminense, e, segundo os cronistas esportivos, "meter uma curvazinha na bola, que entrou na forquilha". A multidão explodiu: "Foi um urro, um eco tremendo. O Maracanã balançou e fiquei tonto", relembrou o craque.

Aquela vertigem, nunca mais. A reconstrução por que passa o estádio comporta um sistema de amortecimento que vai acabar com a sensação de que o Maracanã também vibra com os gols.

Fernando Donasci - 12.jul.07/Folhapress
Vista do estádio do Maracanã e do ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Apesar de tombado pelo Patrimônio Histórico, o estádio foi implodido para ser reconstruído para a Copa de 2014
Vista do estádio do Maracanã e do ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Apesar de tombado pelo Patrimônio Histórico, o estádio foi implodido para ser reconstruído para a Copa de 2014

Debaixo da estrutura principal das arquibancadas, os operários construíram um contraforte, camada de sustentação de cinco metros de largura por três de altura que suporta oscilações de até 6Hz (equivalentes as de um show de heavy metal). O curioso é que o sistema foi preenchido com os restos da marquise e das fundações que sobraram do antigo estádio.

O desaparecimento das marquises é um dos pontos mais polêmicos da obra. Desde 2000 o Estádio Mario Filho está inscrito no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, o que lhe confere o status de único estádio de futebol tombado no Brasil.

Em reunião do conselho consultivo do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em agosto de 2011, um grupo de conselheiros classificou a reforma como "crime". O projeto havia sido aprovado pelo então superintendente do órgão no Rio, Carlos Fernando Andrade. Em agosto de 2010, timidamente, começaram as obras, com a retirada das cadeiras azuis do anel inferior.

O primeiro a falar no tombamento foi o ex-presidente da Academia Brasileira de Letras Marcos Vinicios Vilaça, em 1983, logo após um empate sem gols entre Brasil e Argentina no qual o lateral canarinho Júnior tropeçou no gramado ruim. Vilaça era secretário de cultura do MEC e propôs não só a preservação do Maracanã, "símbolo sociológico marcante no pluralismo cultural brasileiro", como também a do terreiro de candomblé da Mãe Teté, na Bahia. O terreiro foi tombado no ano seguinte; o estádio, só 17 anos depois.

"Houve muita resistência dentro do Iphan, que só se dobrou mais tarde", diz o imortal. "Não opino sobre a atual reforma, pois não conheço detalhes da planta. Mas acho que deveriam reformar sem alterar. E construir para a Copa um novo estádio na Barra."

Há cinco anos, desde que o Brasil foi escolhido como sede do Mundial de 2014, após a desistência da Colômbia, ficou óbvio que o Maracanã, durante anos o maior e mais famoso estádio de futebol do mundo, seria o cenário da entrega da taça. Era só cumprir com as (não poucas) exigências da Fifa. Acabar com a divisão entre arquibancadas e cadeiras foi a principal, criando um novo grau de inclinação que facilite a visibilidade e deixe o estádio com um único lance de assentos --todos individuais e numerados, com encosto de pelo menos 30 cm de altura.

Na cadeira mais próxima ao gramado, a distância para o campo terá 12 metros. Antes, a distância entre o público e o campo era mediada pelas chamadas gerais que, rebaixadas, ficavam quase ao nível do pé dos jogadores. Serão seis rampas de acesso --quatro novas e duas reformadas-- para que os quase 80 mil torcedores saiam em até oito minutos.

Autor de "Maracanã: Meio Século de Paixão" (DBA), o jornalista João Máximo considera que o estádio não é exatamente um monumento histórico: "Não se trata de uma torre Eiffel ou uma Estátua da Liberdade. O que me incomoda é elitização do espaço esportivo. Por que não poderíamos ter, ao menos, 130 mil lugares?".

"E nada garante que o torcedor verá o jogo melhor depois da reforma", assevera. "Não sou viúva do velho Maracanã. Sou viúva do tempo em que a seleção jogava e ganhava copas no exterior. Não se submetia à ganância da Fifa."

Assim que as obras iniciaram, os cariocas se assustaram com o ritmo da destruição.

"Foi com espanto que, da janela de um avião, me deparei com as ruínas do Maracanã. Protegido pelo Iphan, ele foi demolido para a construção de outro estádio, de mesmo nome e no mesmo lugar", lamenta o escritor João Paulo Cuenca. "Além do desrespeito ao patrimônio da cidade, a operação me parece ter sido feita às pressas e às escondidas. Não deu tempo nem para me despedir."

A pressa continua. No momento, os operários trabalham no processo de instalação dos cabos de aço que vão sustentar a nova cobertura. Os andaimes para apoiá-los estão sendo montados. Os cabos estão sendo erguidos, todos ao mesmo tempo, por 120 macacos hidráulicos.

Confeccionada em fibra de vidro e teflon, a cobertura terá 68,4 metros de comprimento --38,4 metros a mais que a antiga. O campo também começa a ganhar forma. Sua demarcação, terraplanagem e nivelamento já começaram. Segundo o governo no Rio, cerca de 70% do novo Maracanã está pronto. Na reta final, o número de trabalhadores será de 5.200.

A um custo que pode ultrapassar R$ 1 bilhão, a reforma está prevista para acabar em fevereiro, teoricamente podendo receber clássicos do Campeonato Carioca de 2013. O jogo de abertura, talvez em março, deverá ser um amistoso da seleção brasileira. A prova de fogo será a Copa das Confederações, prévia do Mundial, com abertura em 16 de junho do ano que vem.

FICHINHA

Apesar de enorme, a expectativa em torno da obra fica longe da comoção nacional que envolveu a construção do Maracanã para a Copa do Mundo de 1950. Erguê-lo não foi fichinha.

Quando a candidatura do Brasil para sediar a quarto mundial foi aceita, pensou-se logo na construção. A turma do contra reuniu-se em torno de Carlos Lacerda. Vereador, o futuro rival de Getúlio Vargas era partidário de que se fizesse um complexo esportivo em Jacarepaguá, no outro extremo da cidade. Na Câmara Municipal, Lacerda travou inflamados debates com o compositor Ary Barroso.

O maior defensor da construção no terreno do antigo Derby Club --"o centro geométrico da cidade"-- foi o jornalista Mario Filho. Seus artigos publicados no "Jornal dos Sports", a partir de maio de 1947, batizaram o movimento de "A Batalha do Estádio".

O jornal encomendou uma pesquisa, prática pouco comum à época, que ouviu mais de mil pessoas entre o público geral e os aficionados por futebol: 79,2% daqueles disseram-se favoráveis ao estádio; 95% destes aprovaram a construção. Em 20 de janeiro de 1948 lançou-se a pedra fundamental do Estádio Municipal do Maracanã (que só na década de 1960 passou oficialmente a Estádio Mario Filho, mas assim só chamado pelo irmão dele, Nelson Rodrigues).

Em menos de duas horas, mais de 200 operários se apresentaram. Calcula-se que uns 10 mil deles estiveram direta ou indiretamente ligados à obra, revolvendo 500 mil sacos de cimento (dois Pães de Açúcar), 10 milhões de quilos de ferro, três milhões de tijolos e outro tanto de madeira, terra e areia.

O "Gigante do Derby" ocuparia uma área de 200 mil metros quadrados, dos quais 130 mil pelo estádio propriamente dito, em sua ousada forma elíptica (317 metros no eixo maior, 279 no menor e um perímetro de 945) e a marquise sem pilastras internas, desobstruindo a visão do torcedor.

Aos 14 anos, João Máximo morava ali perto, em Vila Isabel, e tinha um programa sagrado aos sábados, no fim da tarde, após a pelada: espiar com os amigos o andamento da obra --hoje, com o estádio em transformação, se faz isso pela internet. "Tínhamos o maior Carnaval do mundo, acreditávamos ter o melhor futebol também", diz Máximo. "A conquista da Copa ia sacramentar essa certeza."

Para ficar quase pronto --há quem diga que jamais ficou--, o Maracanã levou um ano e dez meses, a um custo total de 350 milhões de cruzeiros da época (o equivalente a R$ 283 milhões). A capacidade total declarada era de 183.354 espectadores. Só as arquibancadas pegavam 120 mil; as gerais, 32 mil. (No Maracanã da Fifa caberão 78.639 pessoas.)

"MARACANAZO"

Mais de 200 mil espectadores estiveram na final da Copa de 50 --oficialmente, foram registrados 173.850. Depois de campanha convincente --um 2 a 2 com a Suíça e quatro vitórias, sendo o ponto alto a goleada imposta à Espanha na semifinal (6 a 1), numa tarde em que o público invadiu o estádio, atropelando catracas e parte da muralha externa-- o Brasil chegou à decisão com a vantagem do empate.

Àquela altura, duvidar do título, quem havia de? Pois aconteceu o que se sabe. A trave à direita das tribunas de honra ficou conhecida como Gol do Ghiggia, lembrando o placar adverso de 2 a 1. Cinquenta anos depois, Zizinho, o craque daquele time, reconheceria: "Os uruguaios eram melhores".

O "maracanazo" --que cevou nosso complexo de vira-lata diagnosticado por Nelson Rodrigues-- ganhou minuciosa reconstituição em "Anatomia de uma Derrota", de Paulo Perdigão, no fim da qual o jornalista, como que de mãos amarradas, valeu-se de uma ficção à H. G. Wells para explicar o inexplicável: o conto "O Dia em que o Brasil Perdeu a Copa", narrado pelos olhos de um menino, depois transformado no curta-metragem "Barbosa", por Jorge Furtado.

Expressão perfeita em si mesma, o futebol frequenta pouco a literatura brasileira. Entre os escassos exemplos, um se destaca e elege como tema o Mundial de 50: tragédia dentro da tragédia, o relato "Dia dos Mortos", de Sérgio Faraco, não mostra sequer um lance de bola rolando, nem uma batida de lateral. A ação decorre no entorno do Maracanã, na triste hora da saída: "Os dois jovens iam devagar, como todos, e em silêncio, como quase todos. Quem falava, fazia-o em voz baixa, cautelosa".

"Na Boca do Túnel", de Sérgio Sant'Anna, confere ao futebol e ao Maracanã o merecido tratamento, sofisticado, mas elitista --e que, nas nossas letras, esteve mais presente na pena dos cronistas esportivos: os irmãos Nelson e Mario, sobretudo. O conto flagra a angústia do técnico à beira do campo, impotente diante da goleada sofrida por um time pequeno --o bravo São Cristóvão, campeão de 1926.

Prêmio Casa de las Américas de 1980, "Maracanã, Adeus", de Edilberto Coutinho, é uma "avis rara": um livro de contos inteiramente dedicado ao futebol. São 11 histórias, como os 11 jogadores de um time, a primeira delas chamada "Preliminar". A última, que dá título à antologia, narra a trajetória de um atacante cuja carreira foi interrompida pelo alcoolismo.

Mais atual, impossível: "O sobretudo era porque sentia frio, mas estava servindo também para ocultar a garrafa de cachaça, que havia trocado pelo tico-tico Filó num botequim. O estádio vazio, eta mundão do Maraca. Tudo agora silencioso, cadê a galera gritando meu nome, eu ainda garoto, 19 anos se tanto".

Cantado e adaptado nas arquibancadas, "Samba Rubro-Negro", aquele que diz "Flamengo joga amanhã/ Eu vou pra lá/ Vai haver mais um baile/ No Maracanã", não deu sorte ao autor, Wilson Batista. Pelo menos no primeiro momento.
Numa inédita promoção, Wilson levou o cantor Roberto Silva no meio do campo para o lançamento do disco. Depois, viu seu time perder (2 a 1) o Fla-Flu de 1955.

CRAQUES

Três nomes se impõem na galeria de craques do Maracanã: o de Garrincha, que, embora atuando com a camisa 7 do Botafogo, conseguiu a proeza de levar torcedores de outros clubes ao estádio especialmente para vê-lo entortar joões. O de Zico, maior artilheiro da sua história, com 333 gols marcados em 435 partidas.

E, naturalmente, o de Pelé. Foi ali que, em março de 1961, ao driblar nove adversários antes de chutar para as redes e encarar a torcida do Fluminense que minutos antes o vaiava, surgiu a expressão "gol de placa", ou seja, merecedor de uma placa no estádio.
Também foi ali que o Rei marcou o milésimo gol da sua carreira, na noite de 19 de novembro de 1969, de pênalti, e venceu o goleiro argentino Andrada, do Vasco. No dia em que o número recorde de pagantes (183.342) teria sido registrado, Pelé deixou o dele --de bico-- contra o Paraguai, classificando a Seleção para a Copa de 70.

Se não há dúvida quanto ao gol, há quanto ao público: para o pesquisador Ivan Soter, autor da "Enciclopédia da Seleção", outro Brasil x Paraguai, em 1954, teria sido assistido no estádio por mais gente: 195.514 pessoas.

De acordo com os dados de Soter, foram 104 jogos da seleção no estádio: 75 vitórias, 22 empates e apenas sete derrotas. Estatística tão favorável periga não se repetir em 2014: o Brasil só jogará no Maracanã se chegar à final. Um tropeço nas oitavas, quartas e semifinais, e tchau. Salvo se houver mudanças na tabela, o que está em estudos.

Pelé (sempre ele) marcou mais gols com a camisa canarinho no Maracanã: 29. Depois, Zico (14). Seguem Rivelino, Jairzinho e Tostão (12), Ademir (9), Romário (8).

Mas cada torcedor tem o seu jogo e o seu gol inesquecível. O primeiro tricampeonato rubro-negro conquistado em 1955; os 6 a 2 do Botafogo no Fluminense na final de 1957, com cinco gols de Paulinho Valentim, um deles de bicicleta; a vaia, o gol de raiva e os aplausos para Julinho em 1959.

O último campeonato do América em 1960; o bi mundial do Santos (sem Pelé) em 1962; a vitória do Bangu (3 a 0) sobre o Flamengo no título de 1966, com pancadaria generalizada, que começou com Almir Pernambuquinho dentro de campo; os 6 a 0 do Botafogo em cima do Flamengo em 1972.

E a goleada de volta do Flamengo, pelo mesmo placar, em 1981. "Naquele ano, tive permissão de meus pais para ir sozinho ao Maracanã. E, deitado confortavelmente no duro degrau de cimento, vi Andrade, o camisa seis, marcar o sexto gol. Que forra!", conta o artista plástico Raul Mourão.

A polêmica vitória (3 a 2) do Flamengo sobre a Atlético-MG, na decisão do Campeonato Brasileiro de 1980, é a partida inolvidável do escritor Alberto Mussa: "Marquei com minha turma do Andaraí para ver o jogo. Um dos nossos parceiros de sueca [jogo de cartas], o saudoso Mamão, era bilheteiro e deixava a turma pular a roleta da geral".

"Só que naquele dia a confusão foi tanta que, primeiro, me perdi de todo mundo; depois perdi os chinelos. Nunca havia visto a geral tão cheia", relembra Mussa. "Acabei ficando encostado no ferro em frente ao fosso, torcendo sozinho. Eu estava na exata posição, com um ângulo de visão perfeito, para acompanhar um dos maiores momentos da história do Flamengo: vi todo o lance do gol do Nunes, o terceiro, como se ele estivesse jogando para mim, para aquele espectador descalço e solitário, no meio da massa. Quando o jogo acabou, comecei a chorar. Dois torcedores que estavam do meu lado, vendo minha emoção, me convidaram para tomar com eles a cerveja do título".

Ainda os gols de Rivelino em 1975 (com direito a elástico, drible em que o atacante conduz a bola para um lado e, rapidamente, a leva para o oposto enganando o defensor), de Roberto Dinamite em 1976 (com matada no peito e lençol, quando se passa a bola por cima do adversário, como se o envolvesse num lençol), de Romário em 1993 (com drible de corpo no goleiro uruguaio), de Renato Gaúcho (com a barriga) no Fla-Flu de 1995. Sem falar na invasão corintiana de 1976, nos shows de Frank Sinatra e Paul McCartney, na missa do papa João Paulo 2º. e na chegada do Papai Noel de helicóptero.

O Maracanã, tal como o conhecemos e curtimos, não existe mais. Inês é morta e agora é o futuro. Fica uma enorme saudade. Inclusive do churrasquinho de gato ou cutia, que será proibido na Copa.

"Se não me engano, ainda não chamávamos o Maracanã de Maracanã. Dizíamos, simplesmente, Estádio Municipal. Mais uma oportunidade para meu tio fazer-me torcedor do Vasco. Meu tio devia ter alguma importância porque fomos para a tribuna.

A subida era pelo elevador. Dei de cara com o conjunto do estádio. O que vi mudou minha vida: as cadeiras azuis combinando com o verde do gramado. Imediatamente me apaixonei pelo Maracanã, que passou a ser a minha casa", relembra Ivan Soter.

"Estaria aboletado, no restante da minha infância e juventude, na arquibancada junto à torcida do Flamengo, atrás da baliza, que chamavam, naquele tempo, de Gol do Friaça.

Do outro lado, ficava a torcida do Vasco, onde meu tio se esforçou para que eu ficasse, correspondendo ao Gol do Ghiggia. A minha presença naquele posto era tão indiscutível que eu chegava a marcar encontros no local, mesmo com o estádio apinhado. Todos sabiam onde me achar."

 

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