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20/03/2013 - 15h00

A vida no Iraque pós-Saddam dez anos depois da queda

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PETER BEAUMONT
DO "OBSERVER"

Qaislaz Zubaidi está almoçando com sua família em um agradável parque às margens do Tigre. Ele me convida para acompanhá-lo, e observamos quando uma dupla de remadores da União de Remo do Iraque passa com rapidez em meio à corrente marrom do rio. Zubaidi, 47, está no setor imobiliário e, a julgar por sua aparência, faz sucesso. Ele é um membro da seita xiita; dez anos atrás, era um oficial do derrotado Exército de Saddam Hussein, e sua cidade acabava de ser ocupada pelos EUA.

"Eu só fui me entregar em 11 de abril, dois dias depois da queda de Bagdá", diz ele sorrindo. "Só restávamos quatro. O rádio havia silenciado. Não havia comunicação. Ninguém mais a quem pedir ordens. Nós nos sentamos e decidimos que as coisas haviam chegado a um beco sem saída. Então fomos embora. Não senti alívio nem nada, só me senti negligente por abandonar meu posto Aí cheguei em casa e encontrei caos e saques."

Dan Chung - 30.mar.03/AFP
Família iraquiana deixa Basra no sul do país no momento em que as tropas britânicas chegaram à cidade
Família iraquiana deixa Basra no sul do país no momento em que as tropas britânicas chegaram à cidade

Zubaidi fala sem amargura. Ele me diz que é mais feliz hoje em dia, e que odiou sua época no Exército. "Sob Saddam, o Estado intervinha em tudo. Éramos governados com mão de ferro. Naquela época, eu não podia comprar fruta e não tinha carro. Agora tudo mudou. Temos liberdade. Podemos comprar o que quisermos."

"Mas não temos estabilidade", continua ele. "Os políticos aqui se comportam grotescamente. Eles estão subindo nos ombros do povo para se beneficiarem, e também os culpo pela instabilidade sectária que temos aqui novamente."

Conversamos mais um pouco. Só depois de me despedir de Zubaidi e sua família penso na chegada a Bagdá no dia em que a cidade caiu --9 de abril de 2003. Eu me lembro como, embora tivesse visto muitos soldados americanos e britânicos durante os dias da invasão liderada pelos EUA, quando chegamos à capital os soldados iraquianos, como Zubaidi, já haviam ido embora, deixando suas fardas abandonadas em montinhos nas esquinas.

Na cidade de Basra (sul), que havia caído dias antes, os únicos combatentes iraquianos que encontrei eram os cadáveres em frente à universidade, que os locais haviam coberto com tapetes. Levou dez anos para que eu perguntasse a um soldado iraquiano sobre a sensação da derrota.

Perdi o começo da invasão do Iraque. Eu estava na fronteira errada na hora errada, mas rapidamente a alcancei. Cobrindo para o "The Observer", viajando independentemente das forças invasoras americanas e britânicas, eu me vi por acaso entrando a pé em Basra no dia em que ela caiu para as forças da coalizão.

Acompanhei uma coluna de paraquedistas britânicos que eu havia encontrado na estrada, esperando para entrar na cidade. Viajando com dois colegas, continuamos quando os paraquedistas pararam, ao alcançar o estuário de Shatt al Arab, nos limites da cidade. Às margens, encontramos um desfile de estranhas figuras, estátuas de soldados apontando o dedo para o Irã.

Dias depois, a noite caía sobre Bagdá, e eu estava na periferia da capital iraquiana, passando de carro por prédios em chamas, tanques americanos e corpos espalhados de paramilitares de Saddam --os "fedayeen"-- e civis. Aquela noite foi passada no terreno de um mausoléu de cúpula azul construído por Saddam apenas um ano antes, em homenagem a Michel Aflaq, o pai fundador do partido Ba'ath. Fomos convidados a permanecer lá pelos soldados ocupantes da 3ª. Divisão de Infantaria dos EUA, após um estranho incidente em que eles quase nos mataram.

Durante quatro anos continuei voltando, para cobrir as primeiras eleições, e depois a primeira onda de assassinatos sectários, iniciada nos subúrbios de Bagdá. Com o tempo, o conflito sectário varreria o Iraque, introduzindo uma era que os iraquianos chamam de guerra sectária, a qual opunha milícias xiitas infiltradas na polícia aos seus rivais sunitas. A Al Qaeda se envolveu, explodindo bombas em templos e peregrinações xiitas, em filas de combustível e em casamentos. Em três anos, de 2005 a 2008, bairros inteiros foram "limpos", e dezenas de milhares morreram.

CARPA GRELHADA

Minhas duas últimas viagens, em 2007, foram para cobrir a expansão militar dos EUA em Bagdá, quando o então presidente George W. Bush elevou o contingente num esforço para estabilizar a cidade. Esse foi o começo do fim da pior fase das mortes sectárias. Eu me vi duas vezes em comboios atacados por bombas de militantes jihadistas sunitas. Na primeira vez, na cidade de Baquba, quatro soldados iraquianos foram mortos. Na segunda, voltando da cidade de Tal Afara, um carro-bomba foi detonado em frente ao veículo blindado dos EUA no qual eu viajava. Parecia a hora de dar um tempo.

A primeira coisa que eu noto, andando hoje por Bagdá, é que há vendedores de rua com seus tambores de brasas preparando e vendendo "masgouf" --carpa grelhada-- em praticamente todas as calçadas. Há dez anos, o prato nacional só estava disponível, quando muito, nos restaurantes da rua Abu Nawas, que atendia à velha elite. Um dos vendedores explica que a proliferação de lagos artificiais para a criação de carpas derrubou os preços. O que antes era caro se tornou disponível para todos.

Passeando de carro certa tarde, um amigo iraquiano aponta em um poste de luz um cartaz de campanha para a eleição dos conselhos provinciais, em abril. "Veja isso", diz ele. "Diz 'minha província primeiro'. Em árabe, a palavra para província é 'muhafatha'." Ele ri. "Se você tirar o alif [o A longo depois do H] fica 'minha carteira primeiro'." Um engraçadinho, conta ele, já fez essa emenda no Facebook.

Mais tarde, quando visito a ativista de direitos humanos Hanna Edwar, ela me diz que, embora seu país agora possa ter a aparência de uma democracia --eleições e partidos políticos--, ele carece das realidades funcionais. Está assolado pela corrupção, o nepotismo e uma frequente desconsideração pelo Estado de direito.

O sinal mais visível da corrupção que aflige Bagdá é o estado das calçadas. A cada quarteirão, você encontra um trecho escavado e à espera de ser porcamente consertado por empreiteiras que, segundo dizem, subornam políticos locais para que as ruas sejam reformadas quase todos os anos, mesmo que não seja necessário.

Ainda assim, a cidade melhorou. A Bagdá que deixei há cinco anos era um lugar sombrio. Até trajetos curtos para fora do hotel Hamra, que seria duas vezes bombardeado e hoje está quase abandonado, eram perigosos. Lembro-me de estar sentado lá uma noite e ver uma bola de fogo surgir quando um hotel vizinho foi atacado. Havia postos de controle aleatórios e milícias nas ruas, meninos de moto que, se visem um estrangeiro, passavam por telefone a dica de como arrumar dinheiro.

Hoje em dia, Bagdá pode ser um lugar vibrante, com parques lotados e restaurantes movimentados. Há novos shoppings em construção. Você vê Range Rovers e esportivos Lexus. Um dia, vi um ciclista inteiro vestido de lycra, numa bicicleta de corrida Bianchi, a toda velocidade no meio do tráfego. Mas em bairros imensos e menos prósperos, como Ghazaliya, Dora e Saidiya, ainda há raiva e tensão.

Os muros de concreto e os postos de controle com soldados armados, instalados pela ocupação americana no auge da violência sectária, continuam por lá. Eles ainda funcionam para controlar a população, limitando o acesso em alguns bairros a um par de saídas que podem ser facilmente interditadas.

E, embora tenham se retirado os seguranças privados que davam tiros de advertência para fazer o tráfego andar, e os soldados dos EUA não patrulhem mais as ruas, Humvees e veículos blindados continuam em cada esquina, repintados e operados por soldados e policiais iraquianos. Ainda há assassinatos quase diários relacionados à corrupção e à política --não na mesma escala, não mais uma guerra civil, mas um constante pinga-pinga.

Os mesmos muros altos de concreto à prova de explosões ainda cercam a Zona Verde, nome que as autoridades dos EUA deram ao centro da cidade, com seus palácios, moradias governamentais e embaixadas, para diferenciá-lo da perigosa zona vermelha no exterior. Em alguns lugares, os muros foram pintados, mas isso não muda o que eles são: muralhas de fortalezas, construídas para proteger os prédios do interior contra as bombas que ainda os alvejam de vez em quando. Saio procurando as pessoas que conheci durante minhas vezes anteriores em Bagdá. E não encontro ninguém que tenha escapado sem cicatrizes da última década.

Tradução de RODRIGO LEITE.

 

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