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25/03/2013 - 16h31

Leia "A viagem", de Benedito Nunes

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DE SÃO PAULO

"A Rosa o que é de Rosa" (Org. Victor Sales Pinheiro, Difel, 320 págs., R$ 39) reúne os 15 textos que o filósofo e crítico literário paraense Benedito Nunes (1929-2011) dedicou à obra do autor de "Grande Sertão: Veredas".

Escritos ao longo de 50 anos, os ensaios, porém, vão além da obra-prima de Guimarães Rosa (1908-67), cobrindo quase toda sua produção.

Leia abaixo "A Viagem".

*

Através do motivo da viagem, que está presente em quase toda a sua obra, de Sagarana a Primeiras estórias, Guimarães Rosa liga-se às grandes expressões do "romance de espaço" --ao D. Quixote de Cervantes e ao Ulisses de Joyce, para só falarmos dos extremos dessa espécie, em que a narração dos acontecimentos e peripécias se apresenta como a primeira camada da criação romanesca, intermediária da descoberta do mundo natural e humano.

No D. Quixote, as andanças do Cavaleiro da Triste Figura e de Sancho Pança, tanto quanto as histórias avulsas narradas no curso da história principal, são os múltiplos atalhos do mundo, exemplarmente contido no espaço manchego. É nesse espaço que proezas, outrora sustentadas pelo ingênuo heroísmo dos romances de cavalaria, desviam-se para o cômico e o grotesco, e revelam, ironicamente, a incompatibilidade entre o prosaísmo do cotidiano e a ação grandiosa e nobre, objeto de mimese, na antiga epopeia. Do espaço de Dublin, onde esse prosaísmo já domina, e que é percorrido em toda a extensão de seus nexos históricos, culturais, econômicos e sociais, sai outro espaço, universal e cósmico, em que a cidade se transforma num ponto de inserção da vida humana, descrita globalmente, como viagem através de labirintos. A rota de D. Quixote, profusa de aventuras, e a de Dedalus Bloom, cheia de incidentes corriqueiros, que tomam a forma de única aventura humana possível, equivalem a processos de abertura do espaço, concomitantes ao desvendamento do mundo.

Nesse sentido, o Sertão de Guimarães Rosa coloca-se no mesmo plano da Mancha de Cervantes e da Dublin de Joyce. É o espaço que se abre em viagem, e que a viagem converte em mundo. Sem limites fixos, lugar que abrange todos os lugares, o Sertão congrega o perto e o longe, o que a vista alcança e o que só a imaginação pode ver.

"Sertão: quem sabe dele é urubú, gavião, gaivota, esses pássaros." É o lugar "onde os pastos carecem de fechos", mas é, também, "onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar": a vida solta, com seus perigos, que ainda não se aprendeu a viver, algo indefinível, vazio algumas vezes, outras cheio de forças violentas que se desencadeiam, da parte de Deus ou do Demo. "Sertanejos, mire veja: o sertão é uma espera enorme." Espera e demanda que se fazem no escuro, ao longo de sucessivas travessias e encruzilhadas, de viagem ligada a viagem, num périplo sem fim, como o de Riobaldo em Grande sertão: veredas. Através de perigos que se multiplicam, de atos de amor e ódio, de veredas que penetram a profusão das formas naturais --águas e terras, animais e vegetais--, Riobaldo percorre os espaços que formam o espaço do mundo ilimitado. Ora encaminhando, ora desencaminhando, as veredas, divergentes em seu curso, convergem todas no movimento da viagem redonda, que as unifica e lhes dá sentido.

Existir e viajar se confundem. A existência de Riobaldo totaliza-se como viagem finda, que precisa ser relatada para que se perceba o seu sentido. Unem-se, nessa viagem, sob a forma de relato, os diferentes fios do Bem e do Mal, que compõem o emaranhado da existência. Vivendo de momento a momento, de lugar a lugar, sem a compreensão da linha temporal e sinuosa que liga todos os momentos e todos os lugares da existência, só percebemos saídas e entradas, idas e vindas. Mas a viagem redonda, a travessia das coisas --que é vivência e descoberta do mundo e de nós mesmos, nessa aprendizagem da vida, em que o próprio viver consiste--, a viagem-travessia que se transvive na lembrança, constitui o saldo imponderável das ações, que a memória e a imaginação juntas recriam. "Viver --não é?-- é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-aviver é que é o viver, mesmo." E diz Riobaldo ainda: "Eu atravesso as coisas --e no meio da travessia não vejo!-- só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda e num ponto muito mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?" Só no final da narrativa, quando Riobaldo consegue fixar o perfil completo de sua existência relembrada, é que a travessia se apresenta nitidamente: "Existe é homem humano.

O motivo da viagem, que assim transparece na estrutura, na temática e nas intenções morais, filosóficas e religiosas de Grande sertão: veredas, já está latente na forma dos sucessos, conflitos, acontecimentos trágicos ou cômicos, que servem de matéria às novelas de Sagarana. Misto de acaso e necessidade, a ação dos personagens de Sagarana segue, em geral, de maneira ostensiva ou encoberta, a linha itinerante de caminhos que se apartam e se entrecruzam, para se unirem depois, produzindo, pela convergência de causas mínimas, imprevisíveis, circunstanciais, um efeito único, que parece pré-ordenado por uma razão (logos) exterior aos atos humanos. As coisas e os animais participam do encadeamento secreto de causas, que imprime um cunho de necessidade a sucessos casuais, e que faz da necessidade um produto singular da multiplicação de acasos.

Bastaria citarmos, como ilustração disso, "O burrinho pedrês" onde a Providência delega, no curso de uma viagem, ao manso e imprestável burrinho Sete-de-Ouros, a função de salvar da enchente, que intercepta o caminho de volta da tropa, dois dentre os vaqueiros que conduziram uma boiada à estação de embarque. É no ciclo da viagem que o destino se modifica e a ação da Providência se manifesta. À custa de inúmeras circunstâncias, as causas tecem e retecem os seus efeitos, agindo sempre através de movimentos de ida e volta. São encontros e desencontros, são equívocos aparentes, que um recuo no espaço e no tempo transforma em certeza, ou em certezas que a distância neutraliza. Assim, Lalino Salãthiel, de "A volta do marido pródigo", que no desejo de ver outras paragens abandona a mulher, recupera-a, por meio de artimanhas, ao regressar da grande cidade. Essas tretas produzem efeitos que, embora cômicos, resultam de um mecanismo de ações e circunstâncias, análogo ao que gerou, em "O burrinho pedrês", o trágico final antes mencionado.

A viagem coincide, às vezes, com a solução próxima de um conflito moral e espiritual. Augusto Matraga retorna à vida, seguindo a trajetória incerta e indiferente de sua montaria --de novo, um burrinho que o leva ao reencontro com seu Joãozinho Bem-Bem, graças ao qual, cumprindo o seu fadário, a conversão esperada se realiza.

As linhas do Fado, que no processo da viagem se desenrolam, mais flexíveis do que o fatum da tragédia grega, também podem cruzar-se devido à intervenção inopinada e casual de terceiros. Exterioriza-se novamente, por intermédio desses agentes interpostos, o influxo daquela razão ou Providência, muito próxima, pelo que tem de impessoal e objetiva, da pronoia dos estoicos. Temos, ainda em Sagarana, dois exemplos de tais encontros transversais ou oblíquos: "Duelo" e "Minha gente".

Na primeira novela, há dois contendores que jamais podem encontrar-se. Cassiano Gomes quer vingança, Turíbio Todo foge do vingador. Mas por uma via transversa --a gratidão do capiau Timpim Vinte-e-Um a Cassiano Gomes, seu casual benfeitor-- a vingança desse último, já depois de morto, atinge o desafeto, no momento em que Turíbio Todo, sem nada mais que temer, voltava, tranquilo e lampeiro, para reinstalar-se no seu sítio, de há muito abandonado. O desenlace é tão rápido e inesperado aqui quanto em "Minha gente". Como por uma autocorreção das circunstâncias, o amor equivocado do personagem-narrador pela prima, Maria Irma, transfere-se à eventual visitante da Fazenda, amiga da outra, e a quem esse amor parecia desde sempre destinado, enquanto o de Maria Irma se fixa num rapaz, vindo de fora. O motivo da viagem é, no processo da narrativa, absorvido pelos lances de um jogo de xadrez, que se desenrola ao longo da trama, representando uma espécie de reconfiguração simbólica do enredo, a ele paralelo. O equívoco conduz à descoberta do amor legítimo e perdurável. Trocam-se as posições dos agentes, como no jogo de xadrez a posição das pedras. Os lances do acaso decidem a partida, que ninguém perde e que ninguém ganha. Mas o resultado, que arruma os casais, segundo a ordem de suas afinidades eletivas, revela-nos que a sorte tem a secreta racionalidade que Aristóteles descreveu em sua Física: o encontro de múltiplas séries causais que independem umas das outras e convergem para o mesmo ponto.

"Corpo de Baile" não está menos do que Sagarana vinculado a essa concepção do destino itinerante, que se constrói ou com lances aleatórios de jogo ou com os circunlóquios de uma fortuna andeja. No poema de Miguilim, "Campo geral", a vida nova começa para o Menino quando a história acaba e ele parte em viagem pelo mundo. Igualmente a união espiritual do moço e da velha, do vaqueiro Lélio com D. Rosalina, em "A estória de Lélio e Lina" completa-se na peregrinação por eles iniciada no fim do conto. E é ainda uma espécie de peregrinação mas no plano do amor carnal, que reacende a paixão de Soropita por Doralda ("Dão-Lalalão"), ao sabor das recordações, que mais se avivam quanto mais Soropita se aproxima, ao cabo de uma viagem costumeira, da mulher distante.

Há também, a par de muitos périplos, andanças, partidas e chegadas, de Primeiras estórias, a peregrinação sem horizontes, antecipação da morte, e voluntária provação. Assim, vemos no conto "A terceira margem do rio", a peregrinação soturna, tresloucada, rio acima rio abaixo, do homem que vaga, à deriva, no barco onde passeia a sua loucura solitária. "Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais." O polo oposto dessa estranha renúncia à vida, em que a viagem, no espaço indefinido e vazio das águas, dentro de um tempo que se repete, fecha-se sobre si mesma, é o assomo de vitalidade --prenúncio da morte-- do velho de "Tarantão, meu patrão...", que, D. Quixote "em maluca velhice", ganha o mundo, para pelejar a esmo, em ritmo de farsa, parodiando antigos e gloriosos rasgos dos Roldões e pares de Carlos Magno.

Os espaços que se entreabrem, na obra de Guimarães Rosa, são modalidades de travessia humana. Sertão e existência fundem-se na figura da viagem, sempre recomeçada --viagem que forma, deforma e transforma e que, submetendo as coisas à lei do tempo e da causalidade, tudo repõe afinal nos seus justos lugares. Não há, porém, nessa concepção da vida humana, resquícios de fatalismo. O Destino, resultante de ações diversas que se conjugam, não tem a eficácia de uma força exterior e independente. É o desenho completo da trajetória da vida, o diagrama do movimento da existência no tempo, cujo processo de avanço e recuo, por meio de atos e gestos, de que se originam efeitos imprevisíveis, materializa-se nos tópicos da travessia, que abundam em Grande sertão: veredas: as passagens difíceis, os ínvios caminhos, terras prazenteiras e inóspitas, o lugar paradisíaco onde vivia Otacília (o Paracatú), a encruzilhada do Pacto, o deserto Liso do Sussuarão, a indigência do Sucruiú e o grande encontro com os hermógenes no Paredão.

O Destino é, em vez de fator produtivo, o resultado de forças opostas, conflitantes --as de Deus, mansas e constantes, as do Demo, bruscas e agressivas. Mas essas forças divididas só aparentemente são antagônicas. Viver é muito perigoso, porque não há clara delimitação entre elas. Apenas se pode saber que "Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele". A existência humana, imersa no jogo equívoco desses dois poderes, um dos quais, o do Demo, é sempre inferior ao de Deus, participa de uma trama, que de certo modo a transcende, e que, no entanto, a sua atividade temporal ajuda a desenvolver.

É essa atividade temporal da existência, fulcro da poiesis originária, que constitui, na obra de Guimarães Rosa, o último horizonte simbólico da viagem. Vê-se, então, que o significado final desse motivo afasta-se da ideia cristã do homo viator, segundo o qual o homem apenas transitaria no mundo, que não corresponde nem à sua origem nem ao seu verdadeiro destino.

Para Guimarães Rosa, não há, de um lado, o mundo, e, de outro, o homem que o atravessa. Além de viajante, o homem é a viagem --objeto e sujeito da travessia, em cujo processo o mundo se faz. Ele atravessa a realidade conhecendo-a, e conhece-a mediante a ação da poiesis originária, dessa atividade criadora, que nunca é tão profunda e soberana como no ato de nomeação das coisas, a partir do qual se opera a fundação do ser pela palavra, de que fala Heidegger.

Mas foi somente em "Cara-de-Bronze" que Guimarães Rosa pôs a nu o motivo da travessia, focalizando-a direta e expressamente como tema. A viagem passa a constituir, nesse conto, a demanda da Palavra e da Criação Poética. Eis o sentido da estória deste Ariel do sertão, o Grivo, que sai mundo afora, a procurar, para o seu patrão Cara-de-Bronze, "o quem das coisas", e que lhes traz, na volta, como único bem, "a viagem da viagem": o relato poético do que viu, ouviu e imaginou.

 

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