Carlo Ginzburg e o discurso histórico
Além de ser um dos grandes historiadores da Europa, Carlo Ginzburg foi, de certa forma, responsável pela atenção que, no Brasil dos anos 1980, se começou a dedicar à historiografia italiana, uma das mais portentosas, originais e criativas que existe. Desde o meado daquela década, publicou-se, entre nós, praticamente tudo quanto saíra ou ia saindo da "oficina" de Ginzburg, os carros-chefes sendo então, e talvez ainda hoje, "O Queijo e os Vermes" e "Os Andarilhos do Bem", dois de seus primeiros trabalhos [publicados no Brasil pela Companhia das Letras].
Muitos dos de minha geração atingiram a maturidade hipnotizados pelo brilho de "Mitos, Emblemas, Sinais", traduzido em 1988. Menos capaz de conquistar o grande público, o livro encerrava uma agenda de pesquisa e reflexão histórica instigante e oxigenadora, descortinando possibilidades variadas para os que começavam a se cansar do círculo vicioso no qual caíra a história das mentalidades, em particular, e a historiografia francesa dos "Annales", como um todo, declinante após a época áurea representada pelos trabalhos de Marc Bloch e Fernand Braudel.
Descobrindo Ginzburg, descobriam-se camadas e camadas de uma historiografia extraordinária: Federico Chabod, Delio Cantimori, Eugenio Garin, Franco Venturi, Giovanni Levi, para citar apenas os cumes mais altos. O tradicional afrancesamento das elites brasileiras e, mais recentemente, o impacto da cultura anglo-saxônica abriram caminho a Ginzburg com alguma surpresa, e só agora se começam a traduzir os trabalhos de outro expoente dos estudos históricos da Itália, Adriano Prosperi.
Autor muito sofisticado, Ginzburg pode, contudo, em muitos de seus livros, ser abordado em pelo menos duas chaves de leitura: a mais complexa, para estudiosos, a mais acessível, para leigos. Se nos últimos trabalhos Ginzburg parece ter-se dedicado, sobretudo aos primeiros, "Os Andarilhos do Bem" (1966) e "O Queijo e os Vermes" (1976) continuam cativando os leitores não especializados. Talvez o momento de virada tenha ocorrido em 1989, com "História Noturna" e o esforço hercúleo de compreender as estruturas profundas mobilizadas na elaboração do complexo do sabá, cerimônia ritual noturna em que as bruxas celebravam o diabo.
"Investigando Piero" (trad. Denise Bottmann, Cosac Naify, 312 págs., R$ 89), ocupa um lugar intermediário entre, por um lado, a história do moleiro Menocchio e a dos camponeses friulanos que lutavam em batalhas noturnas a fim de garantir boas colheitas, protagonistas, respectivamente, de "O Queijo e os Vermes" e "Os Andarilhos do Bem", e, por outro, o estudo vertiginoso da "História Noturna". Parece-me um exercício de método necessário ao projeto do historiador e à tarefa que se impôs desde 1966, quando começou a perseguir os nexos misteriosos que cercam a feitiçaria europeia como problema histórico.
Ginzburg admira Piero della Francesca, é um apaixonado por pintura, traz em sua formação marcas profundas de historiadores da arte. "Investigando Piero" parece um tributo ao ano que passou como bolsista no Instituto Warburg de Londres, um redimensionamento crítico dos estudos iconográficos e/ou iconológicos sob perspectiva histórica, e, por fim, um testemunho da inquietação que carrega sempre consigo e o torna um dos mais atraentes historiadores contemporâneos: "Não sabia se preferia ampliar o âmbito do conhecimento histórico ou reduzir seus limites, se preferia resolver as dificuldades ligadas ao meu trabalho ou criar continuamente novas", confessaria em "Mitos, Emblemas, Sinais".
"Investigando Piero" é anterior a esta confissão: foi publicado em 1981 (e traduzido pela primeira vez no Brasil em 1989). É um livro curto, admiravelmente escrito, magnificamente ilustrado, repleto de dúvidas e hipóteses ousadas. Analisa algumas das obras-primas do pintor que muitos consideram um dos gênios maiores do Renascimento: o "Batismo de Cristo", o "Ciclo de Arezzo", a "Flagelação". Esclarece que deixará de lado os aspectos propriamente formais por não ser historiador da arte e sim estudioso de história, motivo pelo qual perseguirá, com faro de caçador, dados obscuros da vida do pintor, redes de comitentes e evidências cronológicas para, com base nestes "mecanismos de controle", fugir das "cadeias interpretativas circulares" caras a certas análises iconológicas, que tomam a obra como pretexto para presumidas decifrações simbólicas.
Assim sendo, Ginzburg se interessa pelas circunstâncias nas quais Piero pintou as obras mencionadas, contextualizando as pinturas, deixando de lado as bases puramente estilísticas e recorrendo à análise formal quando ela serve à abordagem histórica. Com base em documentos escritos e em análise iconográfica, Ginzburg trabalha em dois flancos: num deles, confirma o apreço pelos arquivos e pela erudição, descobrindo documentos e os cotejando com outros conhecidos; no outro, dialoga com os especialistas, críticos e historiadores da arte, arriscando interpretações novas. Em ambos, mostra o cuidado com o detalhe, que pode parecer irrelevante, mas é revelador. No rigor e na minúcia, passagens da bela narrativa de "Investigando Piero" se aproximam dos grandes textos da história oitocentista; na leitura detida e milimétrica dos elementos arquitetônicos --plantas baixas, colunas, portais-- ou fisionômicos --perfis, barbas, vestes, cabeleiras, calvas--, recupera a tradição dos antiquários, tão cara, aliás, aos warburguianos.
O contexto histórico invocado por Ginzburg para articular as diferentes pinturas de Piero é o da polêmica acerca da concórdia entre a igreja do Ocidente e a Igreja Grega. Para tentar resolver o assunto, se realizara um concílio em Florença no ano de 1439, e o próprio imperador do Oriente, João 8º Paleólogo, estivera na cidade a fim de negociar. O jovem Piero chegou a vê-lo na época, desfilando pelas ruas ao lado de outros dignitários, e carregou a impressão pela vida afora.
O episódio seria invocado no "Batismo de Cristo", o que estudiosos como M. Tanner já haviam percebido em 1972: a novidade trazida por Ginzburg diz respeito à rede de comitentes envolvida na realização da obra, novelo cujo fio leva ao humanista Ambrogio Traversari, empenhado na reconciliação entre as duas igrejas. Humanismo e concórdia seriam igualmente detectáveis por detrás do "Ciclo de Arezzo", tanto na estética --mais afeita a moldes gregos que romanos-- quanto na encomenda --realizada pelos comerciantes e humanistas aretinos Francisco e João, ligados a um dos campeões da concórdia entre as igrejas na época, o cardeal Bessarion. Expoente da igreja grega, o prelado e humanista protegia os frades menores, intervindo nas obras pictóricas que iam sendo desenvolvidas na igreja de São Francisco de Arezzo: dados históricos e biográficos servem, portanto, para que Ginzburg explique melhor a escolha do assunto --a lenda da verdadeira cruz--, uma vez que, além de ser tema caro à ordem franciscana, Bessarion possuía consigo uma relíquia famosa do santo lenho.
História e biografia fundamentam, igualmente, a análise brilhante --talvez o ponto alto do livro-- que Ginzburg realiza acerca da "Flagelação de Urbino", pequeno painel que ainda hoje pode ser visto na Galeria Nacional de Urbino, cidade para a qual foi levado graças à encomenda de Federico da Montefeltro, senhor local e um dos mais célebres "condottieri" do Renascimento italiano. Tudo, no quadro, é complicado e misterioso, exceto a autoria, já que Piero assinou o trabalho em letras romanas maiúsculas, no degrau situado aos pés de Pilatos. O resto --datação, personagens, relação entre planos que parecem independentes entre si-- encontra-se mergulhado em controvérsia. Ginzburg se posiciona com arrojo, mas não vale a pena adiantar ao leitor como o faz, o que diminuiria o impacto de uma aventura intelectual única.
Cabe sublinhar o requinte, a erudição e a minúcia do método, que transita das análises morellianas de narizes pontudos, orelhas esquisitas, olhares vagos, faces pálidas até o estudo dos elementos alegórico-religiosos presentes na arquitetura, destacando ainda os "retículos sociais" em que tomam forma os esquemas iconográficos: eles permitem, por exemplo, distinguir significados, como os assumidos por obras destinadas ao público amplo --o "Ciclo de Arezzo"-- ou pelas que se dirigem a circuitos privados --a "Flagelação".
Cabe destacar também que nada disso teria o alcance que tem se o particular não servisse ao conjunto geral: o Renascimento italiano e um período peculiaríssimo da história humana. Novas ideias estavam em gestação, novas formas de relacionamento político e religioso indicavam mudanças fundamentais nas estruturas de governo e abarcavam as relações diplomáticas, o que amplia o escopo do desejo de concórdia abraçado por Piero e por aqueles que encomendavam suas obras.
Com "Investigando Piero", Ginzburg punha em prática corolários da microhistória, combinando microscópio e telescópio. Contradizendo suas assertivas iniciais --quando não se reconhece como especialista nos estudos do gênero--, Ginzburg se mostra ainda um estudioso de história da arte. As páginas sobre a inesperada influência de Benozzo Gozzoli, pintor de corte, sobre o Piero matemático e humanista são de grande beleza e sensibilidade, bem como as considerações acerca da marca de Piero no veneziano Vittore Carpaccio, pintor da geração seguinte à sua. Sem dizê-lo explicitamente, Ginzburg enfrenta, assim, um problema fundamental da reflexão artística, e presta homenagem, entre outros, a um de seus mestres, Ernst Gombrich: a ideia de que obras de arte também se originam em obras anteriores, às vezes até mais do que na observação direta das coisas.
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