Clássico tcheco tem tradução para português
Isolado no idioma tcheco, Karel Capek (1890-1938) não teve o mesmo destino de seu compatriota e contemporâneo de Franz Kafka (1883-1924), que escrevia em alemão.
A primeira tradução direta do tcheco de "A Guerra das Salamandras" [Record, 336 págs., R$ 39,90] mostra por que ele tem a envergadura de outras terríveis alegorias do futuro como "1984", de George Orwell, e "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley.
Abaixo, leia o prefácio de Luís Carlos Cabral, tradutor da edição.
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O título acima não é meu. É o de um extenso artigo de Ivan Klíma, escritor tcheco, a respeito de toda a obra de Karel Capek. Modernidade e apocalipse dariam margem a infinitas digressões sobre evolução e finitude. Descanse, não será o caso. Falarei brevemente da alma. Da alma tcheca. E nem sei por onde começar.
Vivi em Praga dos 11 aos 16 anos. Saí de lá em 1966, antes da entrada dos tanques soviéticos, levei 23 anos para voltar e desde então vou sempre que posso. Senti medo uma única vez, a última: a vez em que ensaiei ficar sozinho, olhando pela janela de um hotel que substituíra meu velho lar o triste pátio da infância que ressurgia. A porção eslava de minha alma na fresta. Corri. Entrei no botequim de marinheiros de terra seca. Dei de cara com Van Toch. Muitos, muitos Van Toch. Uma infinidade de sonhos perdidos em cada mesa. Talvez seja esta a principal qualidade da alma tcheca, que chamá-la de eslava seria exacerbar a já incômoda generalização: hoje perdi e vou celebrar, mas amanhã será um novo dia, e celebrarei de novo, chova ou faça sol.
As intempéries políticas, quase sempre impostas de fora, são rotina na vida dos tchecos: Guerra dos Cem Anos, Guerra dos Trinta Anos, dominação austro-húngara, ocupação alemã, invasão soviética, a longa marginalização da própria língua. O apocalipse sempre à espreita, mais, presente. A violência conforma a alma, radicaliza procedimentos. Não haverá ninguém mais leal. Não haverá ninguém mais traiçoeiro.
Capek é montanhês. Nasceu em Malé Svatonovice, nas montanhas Krkonoe, na fronteira ocidental norte, ao lado da Polônia, filho de médico, e jamais esqueceu suas origens rurais. Dásenka, biografia minuciosa de uma cadela, bate Bambi e A dama e o vagabundo, os clássicos de Walt Disney, em capacidade de emocionar. Cresceu em Úpici. Estudou primeiro em Hradec Kralové, Brno e depois filosofia, história da arte, cultura alemã, inglesa e da Bohemia na Universidade de Carlos, em Praga, uma das primeiras da Europa. Passou pela Sorbonne e a Universidade de Berlim. Aos 25 anos, doutorou-se em filosofia.
É tão eslavo como Jaroslav Hasek e Franz Kafka. Os três são da mesma época. Haek, do Bravo soldado Svejk, e Kafka, bem, Kafka, nasceram com meses de diferença no mesmo ano de 1883. Capek, sete anos mais tarde. O primeiro era um boêmio aloprado e do segundo, quem sou eu para falar, a não ser lembrar o fato de ter optado por escrever no peculiar alemão que e falava em Praga, coisa que acabou facilitando sua entrada no mundo.
Karel Capek foi prolixo, escreveu de tudo, algumas vezes em parceria com o irmão três anos mais velho, Josef: literatura infantil, peças, contos, romances, ensaios políticos, crônicas para jornais, publicou livros de entrevistas, dirigiu teatro. Morto, expuseram sua correspondência. Foi amigo de T. G. Masaryk, o fundador da Tchecoslováquia. E morreu cedo, de pneumonia, aos 48 anos de idade.
Levei um susto ao tentar comprar o livro Válka z mloky, este A guerra das salamandras, numa livraria de Praga, a cidade das livrarias, onde os camelôs não vendem quinquilharias, vendem livros em suas barracas pressionadas por filas. Não foi possível. Não havia. Estava esgotado. Marta Hanzlova e Masa Chvojková, duas amigas queridas, tiveram de ir à luta para me ajudar. E acabaram descobrindo um exemplar surrado de 1939 num sebo centenário.
Capek, bem mais moço, 65 anos mais moço do que Jules Verne, também se dedicou à ficção científica, à literatura fantástica. Tentou empreender a tarefa utópica de inventariar a imaginação. Vejo-o ao lado de Jorge Luis Borges, H. G. Wells, H. P. Lovecraft, Robert Louis Stevenson. Sua peça R.U.R. (Rossum's Universal Robots) lança a palavra robô, derivada de robota, que poderíamos traduzir por "trabalho forçado".
A guerra das salamandras é um exemplar dessa vertente premonitória; a absurda alegoria do que então é iminente, mas ainda não aconteceu: a ascenção do nazismo. É um livro ao mesmo tempo divertido e trágico, uma sátira a respeito dessa bobagem dramática que é o ser humano, uma espécie que engendra permanentemente seu próprio fim. Traduzi-o do tcheco, mas cercado de muletas: uma péssima tradução para o espanhol, uma excelente ao inglês. E de todo o universo de amparo que a tecnologia proporciona. Meu objetivo é ser fiel ao autor e agradável ao leitor.
Devolvo a palavra a Ivan Klíma:
Capek foi um escritor de grandes metáforas, fantasias brilhantes e visões apocalípticas. Foi um autor que aparentava mirar os acontecimentos do mundo exterior, a disputa ideológica, o flito entre nações --conflitos de natureza claramente impessoal. Mas pode a verdadeira literatura ser desenvolvida a partir de impulsos impessoais, de uma mera necessidade intelectual de abordar problemas, mesmo os mais importantes?
Eu duvido.
Não será difícil concordar com Klíma. No livro que aqui começa, o leitor encontrará uma humanidade profunda --sim, profunda, poço sem fim-- que o levará a rir e a refletir.
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