O porto, de Leda Cartum
SOBRE O TEXTO Ordenados de modo a formar uma breve narrativa, estes trechos integram o novo livro da escritora de 26 anos, "O Porto", a sair pela Iluminuras. Foram ilustrados em xilogravura pelo artista Alexandre Teles, 35.
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1. O dia todo tinha sido enorme - e a cidade ecoava no nosso corpo com suas cores mornas, os bustos e as galerias: parecia que dava para pegar com as mãos o que se formava no ar. Mas depois, quando nos calamos, de costas eu percebi um estranhamento crescer entre nós e se instalar perverso no escuro. Era como um bicho do mato que entrou sem avisos no quarto de hotel: enquanto deixávamos de nos olhar e nos afastávamos do contato, progressivamente também perdíamos o que tínhamos sido juntos e uma ignorância mútua ganhava lugar. Daí tomei coragem e acendi a luz do abajur do criado-mudo -numa curva dos pescoços voltamo-nos um para o outro: tudo aquilo que construímos se desfez em um segundo, e nos descobrimos completos desconhecidos. A intimidade que até então dispensava o cálculo e desmedia os gestos nessa noite desapareceu: e o que sobrou fomos nós dois sós. Encaramo-nos por muito tempo, mas apenas porque estávamos tão constrangidos que não sabíamos como desviar o olhar. Procurávamos algum traço familiar, qualquer expressão ou movimento que devolvesse o conhecimento perdido -e como não encontrávamos, nada surgia para dar conta da vergonha dos nossos corpos nus.
Pude te ver naquela noite como se nunca tivesse te visto antes: como se te visse passando pela rua. Te vi de longe, de muito longe, e com a certeza de que esqueceria do teu rosto assim que te perdesse de vista. Mas somos pessoas longas.
Foi algum tempo, foram minutos, até que o ar marrom avermelhado transbordasse da janela de Florença -e despertamos de um sono líquido, e chacoalhamos a cabeça: nos reconhecemos de pronto, nos deitamos e deixamos, entrançados e cansados.
Alexandre Teles | ||
2. Tudo se dispersa entre as horas seguintes àquelas que duram. Tudo o que dura depois derrama no escuro e encharca as roupas secas e a toalha do banheiro. Faz muito tempo que era ontem e estávamos em outro país: no intervalo de um dia inteiro e de um oceano chamado Atlântico voltamos para casa. Tudo chegou cheio de um cheiro forte que não estava aqui antes. À noite, quando a cama antiga nos recebeu, uma voz pouco a pouco cercou o sono e nunca mais foi embora. Procurei nas malas desfeitas e sob as fronhas dos travesseiros mas não encontrei nada ainda.
Alexandre Teles | ||
3. O percurso de volta é muito mais curto do que o de ida: já se conhece o caminho traçado e não sobraram expectativas além daquelas que se cumpriram. No entanto voltar demanda tanto mais tempo do que a partida - é preciso enfrentar todos os monstros da memória para aportar de novo. É preciso encontrar o que se tinha sido e reconhecer o que se abandonou: é também necessário perder uma a uma todas as tardes daquela viagem, que ficarão espalhadas no meio da casa em constante desordem. A volta se costura minuciosamente e depois desmancha ponto por ponto, como a busca que ainda não sabe qual é o objeto que está perseguindo.
Alexandre Teles | ||
4. Uma viagem traça um arco no espaço. Como pode haver outro tempo além desse que me chama? Como pode ser diferente se escuto com o corpo a madrugada de hoje? O que é que segue correndo mesmo quando já não posso mais alcançar com os olhos? O que sobrou daquele pedaço de terra que deixei? Onde estão todos os dedos que se enroscavam na areia? Hoje não são mais que dez e da areia só sinto o cheiro impregnado no espaço. Amor é o que arrisca tudo em um chamado repetido e sem sentido.
Alexandre Teles | ||
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