Leia trecho de roteiro do filme "Eu não Sou Daqui", que estreia em Tiradentes
SOBRE O TEXTO O trecho abaixo é parte do roteiro do longa-metragem "Eu não Sou Daqui", que estreia na 20ª edição da Mostra de Tiradentes, uma das principais vitrines da produção autoral brasileira. O filme toma por mote o encontro entre um andarilho e o técnico de um time de futebol de várzea. O festival mineiro, pelo qual já passaram Kleber Mendonça Filho e Gabriel Mascaro, vai até o dia 28/1.
Foto Bruno Santos/Folhapress | ||
EXTERIOR/DIA - CAMPO DE FUTEBOL DE VÁRZEA
PATO e ZÉ GRANDE estão na beira do campo, à sombra de uma árvore frondosa. O gramado está alto pela falta de cuidados, e o mato já avança em algumas áreas. Ruídos de máquinas e sinais de alerta vêm da oficina da companhia ferroviária, atrás de uma das traves. Os trilhos circundam o campo de futebol, e os trens carregam o minério para longe dali.
PATO, sentado num tijolo, pica um graveto. O velho ZÉ GRANDE, de pé, escorado no muro, tem o olhar longe. Não se falam. Desde o primeiro encontro, sentem-se confortáveis em silêncio.
Um homem surge e caminha em direção aos dois, que, num primeiro momento, não o identificam. Ele veste uma camisa alguns números acima do seu tamanho, enfiada para dentro da calça. É ELI, 42 anos, filho de ZÉ GRANDE. ELI é recebido sem entusiasmo pelos dois homens. Ninguém se toca.
ELI
Tá bom, pai?
ZÉ GRANDE
Bom, meu filho.
ELI
Bom, Pato?
PATO consente com a cabeça.
ELI
Melhorou o barraco ali, né, pai?
ZÉ GRANDE
É, melhorou.
Vai ficar melhor ainda.
ELI
Tá bom. E o Pato?
Tá catando no gol aí?
PATO
Seu Zé tá me ensinando umas coisas aí.
ELI
Ele já tá pegando igual o Goiabinha, pai?
ZÉ GRANDE
Ainda não. Mas vai pegar.
Vai pegar melhor.
ELI se aproxima um pouco mais de ZÉ GRANDE.
ELI
E o senhor, pai? Tá ficando aí?
ZÉ GRANDE
É, tô.
ELI
Hoje faz uma semana que o senhor não vai em casa.
ZÉ GRANDE
Tô bem aqui.
ELI
Esse barulho aí incomoda demais.
O barulho dos vagões, dessas máquinas.
ZÉ GRANDE
Durmo tranquilamente.
ELI
Nós temos uma casa boa na cidade, pai.
Ah, não... Vai ficar morando em vestiário de futebol?
O senhor tem família lá, pai.
ZÉ GRANDE não dá sequência à conversa. Aquele diálogo parece já ter acontecido outras vezes. O barulho das máquinas continua. ELI volta mais incisivo.
ELI
Eu vou insistir com o senhor de novo, pai.
Em nome de Jesus...
ZÉ GRANDE
(interrompendo ELI)
Para com isso, Eli! Já te falei sobre esse negócio.
Você escolheu Jesus, a Bíblia...
Eu escolhi isso aqui!
ZÉ GRANDE sai de vez da conversa e vai em direção ao barraco, antigo vestiário do campo, improvisado como morada. PATO continua sentado. Com os olhos baixos, arranca pedaços da grama. ELI vê o pai se distanciar na imensidão do campo de futebol.
ELI
O que tá acontecendo com o pai, Pato?
Ele tá estranho.
Tem uma semana que ele não vai em casa.
PATO pica os pedacinhos de grama.
ELI
Conversa com ele, Pato.
Ele tá te escutando mais do que o povo lá de casa.
ZÉ GRANDE passa pelo varal em que os uniformes do time estão pendurados. Pega um dos shorts e entra no barraco. A locomotiva solta um apito. O som dos vagões desliza pelos trilhos e a terra trepida. O trem se aproxima.
LUIZ FELIPE FERNANDES, 36, é cineasta.
ALEXANDRE BAXTER, 37, é fotógrafo e fundador da produtora Alicate.
VÂNIA MIGNONE, 49, é artista plástica e abre exposição na Casa Triângulo, em São Paulo, no dia 4/2.
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