Minerais magnéticos armazenam quase toda informação da humanidade

Crédito: Divulgação
O gravador digital de dados em fita cassete Exabyte ao lado de disquetes

JOÃO PAULO SINNECKER

RESUMO Autor sustenta que os minerais formados por óxidos de ferro deveriam receber uma justa homenagem de nossa sociedade, global e digitalizada. Seus átomos, dotados da surpreendente propriedade magnética, armazenam a quase totalidade da informação do mundo atual, de vídeos e música a fotos e textos (inclusive este).

Quais as cem descobertas mais importantes da ciência? A pergunta é subjetiva e difícil de responder. Afinal, são quase 2.500 anos de contribuições relevantes. Mas vai aqui uma sugestão de item que poucos incluiriam nessa lista: minerais formados por óxidos de ferro.

Do ponto de vista da sociedade contemporânea, dita global e digital, esses minerais —em geral, duros, quebradiços, de cor escura e, por vezes, dotados da curiosa propriedade do magnetismo— merecem lugar de destaque.

Razão principal: essas substâncias, formadas por átomos de ferro e oxigênio —cujas fórmulas químicas mais comuns são Fe3O4 e Fe2O3—, foram fundamentais para o desenvolvimento de sistemas que hoje armazenam praticamente toda a informação gerada pela humanidade, de dados financeiros a textos e filmes, passando por fotos, músicas etc.

E isso também engloba tudo que está na chamada nuvem, que nada mais é, como diz piada recorrente na internet, um conjunto de computadores de outra pessoa.

Memória física de nossa sociedade, os óxidos de ferro (entre eles, os ímãs naturais) são aquelas substâncias amarronzadas que, por décadas, recobriram os discos rígidos dos computadores e dos hoje quase extintos disquetes e fitas cassete. Ou seja, qualquer equipamento que empregasse o processo de gravação magnética.

Praticamente todos os cidadãos do planeta fazem uso direto e indireto dessa ferramenta. Ainda em 2003, estudo da Escola de Gestão de Informação e Sistemas da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA) estimou que 87% de toda a informação armazenada no mundo estava em mídia magnética (discos rígidos, fitas magnéticas etc.).

O restante se dividia em papel (livros, jornais, revistas) e meios óticos (filmes, microfichas etc.).

Segundo o relatório, já se armazenavam em meios magnéticos 92% de toda nova informação gerada. Nos anos seguintes, esses percentuais devem ter se tornado ainda mais impressionantes.

DIGITAL

Mas o que é o armazenamento magnético? O processamento de dados em computadores se dá por meio das unidades mínimas de informação, os bits, que podem assumir o valor 0 ou 1.

Exemplo simples e corriqueiro: ao captar o som de uma voz, o gravador de um celular transforma a informação presente nas ondas sonoras originais (dita analógica) em uma sequência desses dois algarismos. A formação dessa longa fila de 0s e 1s é o processo conhecido como digitalização.

A estrada que levou do analógico ao digital é longa e pavimentada de invenções e descobertas.

A Pedra com Alma
Alberto Passos Guimaraes
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Então, do começo. O livro "A Pedra com Alma" (Civilização Brasileira, 2011), de Alberto Passos Guimarães, pesquisador emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio, descreve relatos de poetas gregos, datados de 2000 a.C., sobre minerais naturais que se atraíam ou se repeliam mutuamente.

Há também registros de comportamentos semelhantes em tábuas antigas da Mesopotâmia, bem como entre os chineses, que desenvolveram um sistema de orientação baseado na bússola. Consistindo basicamente numa agulha imantada que se guia pelo campo magnético terrestre, essa invenção foi fundamental para as grandes navegações do século 16.

Eis, portanto, outro feito que deve constar do currículo desses minerais, presentes no cotidiano desde ímãs de geladeira até peças de equipamentos ultrassofisticados.

Não é de estranhar que muito da tecnologia atual esteja baseada não só no ferro (Fe) e no oxigênio (O) dos minerais à base de óxidos de ferro, mas também no silício (Si), matéria-prima dos cérebros (os microprocessadores) dos computadores. Esses elementos químicos estão entre os mais abundantes da crosta terrestre.

O comportamento magnético dessas e de outras substâncias que apresentam essa propriedade foi compreendido no início do século passado, com pesquisas de físicos como os franceses Pierre Curie (1859-1906), Pierre Weiss (1865-1940) e Louis Néel (1904-2000) —este último ganhador do Nobel de Física de 1970 pela descrição das propriedades magnéticas dos óxidos de ferro em particular.

Foi apenas a partir da década de 1920, porém, com o início da mecânica quântica —teoria que lida com os fenômenos no diminuto universo atômico e subatômico—, que foi possível entender em detalhes o comportamento magnético.

MAGNETIZAÇÃO

Materiais como a magnetita e sua "prima" menos famosa, a maguemita, têm uma propriedade intrínseca chamada magnetização, que pode ser entendida como a capacidade de gerar um sem-número de "agulhas de bússolas" subatômicas, apontando em direções bem definidas.

Ao aplicarmos campos magnéticos sobre um material não magnético (metal, por exemplo), é possível forçar essas "agulhas" a se alinharem numa direção escolhida. Assim, criamos um ímã provisório. No caso da magnetita (entre outros materiais), no entanto, essa propriedade é permanente.

A principal vantagem do processo de magnetização é que as direções das "bússolas" podem ser medidas, e a informação que elas representam ("0s" ou "1s"), recuperada por meio de leitores especiais —como o antigo cabeçote de um gravador de fita cassete ou mecanismo semelhante presente nos discos rígidos—, sem que, nesse processo, haja perda da informação gravada. E essa recuperação pode ser repetida inúmeras vezes.

Esse é um processo ao qual a humanidade deve muito. Foi ele que levou aos primeiros sistemas de gravação magnética da voz humana, já no final do século 19. É ele que dá a segurança a este signatário de que cada letra deste texto poderá ser recuperada a qualquer momento. E é nele que se baseia praticamente todo o armazenamento da informação no mundo atual.

Os primeiros grandes sistemas de armazenamento magnético, com a finalidade específica de gravar informações, surgiram na Alemanha, no final da década de 1920, com uma fita de plástico recoberta com fina camada de óxido de ferro.

Fitas semelhantes foram usadas para gravação sonora da década de 1950 à de 1990. Desse período, vale citar o walkman, da Sony, o primeiro reprodutor de fitas de áudio portátil, febre mundial a partir do final dos anos 1970.

Também nessa época surgiram os primeiros sistemas populares de reprodução e gravação de vídeo, os VHS e os Betamax, igualmente à base de fitas magnéticas.

Talvez os mais velhos se lembrem de que, no seriado "O Túnel do Tempo", nos anos 1960, havia uma sala de controle sofisticada na qual se podia ver um enorme computador cujas unidades de armazenamento eram fitas magnéticas em constante movimento.

Em paralelo, foram desenvolvidos os primeiros sistemas de gravação digital, nos quais a informação analógica era transformada em bits ("0s" e "1s"). Começava a era digital.

NOVOS TEMPOS

Alguns leitores devem se lembrar de como era enfadonho rebobinar fitas de áudio e vídeo para acessar uma cena ou faixa musical.

A IBM resolveu o problema: criou um sistema no qual a informação ganhou "endereço", podendo ser localizada com muito mais rapidez. O dispositivo era formado por vários discos metálicos —recobertos por fina camada de óxido de ferro— que podiam girar em alta velocidade.

Nasciam, assim, os primeiros discos rígidos, que até hoje habitam o interior dos computadores. O primeiro deles foi fabricado em 1956 e tinha 50 discos magnéticos de 24 polegadas, com capacidade total de armazenamento risível para padrões atuais: 3,75 megabytes, menor que o tamanho do arquivo atual, em formato MP3, da canção "Saudosa Maloca", de Adoniran Barbosa (1910-1982).

De lá para cá, pesquisa básica, desenvolvimento tecnológico e inovação fizeram daquele trambolho um dispositivo bem menor e com capacidade de armazenamento cerca de 1 milhão de vezes maior.

Um dos marcos nesse processo ocorreu no final da década de 1980, em pesquisa feita pelo francês Albert Fert, em colaboração com o brasileiro Mario Baibich, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e paralelamente pelo alemão Peter Grünberg.

Esses físicos observaram e explicaram um fenômeno novo que ocorre em dispositivos fabricados com várias camadas magnéticas: a magnetorresistência gigante, que permitiu enorme aumento da densidade de gravação magnética, elevando em muito a capacidade dos discos rígidos. Essa descoberta deu a Fert e Grünberg o Nobel de Física de 2007.

Atualmente, o império dos óxidos de ferro começa a esmaecer. Discos rígidos modernos já não são mais fabricados com essa substância. Mais: há limites impostos por leis físicas na nanoescala que impedem que se vá além de certo número de bits por unidade de área —e já estamos bem perto desse patamar.

Nos últimos anos, entraram em cena os pendrives, memórias portáteis que empregam um fenômeno elétrico (e não magnético) para gravar e recuperar a informação. E esses dispositivos, conhecidos pela sigla SSD, já substituem discos rígidos, com a vantagem de não precisarem da parte mecânica para gravação/recuperação de dados e gastarem menos energia.

Há também propostas recentes, resultados dos avanços em nanociência e nanotecnologia, para o uso, como memória, de materiais híbridos, dotados de propriedades tanto elétricas quanto magnéticas.

Os paradigmas de armazenamento de informação estão mudando. Mas o ocaso dos óxidos de ferro será lento, pois demandará muito tempo (anos, décadas?) até que toda a informação contida neles seja transferida para outras mídias.

Mesmo sem o charme e a publicidade da lâmpada elétrica, os minerais à base de óxidos de ferro merecem um lugar naquela lista proposta no início deste texto. Afinal, o mundo atual é uma vasta Biblioteca de Alexandria assentada em átomos de ferro e oxigênio.

JOÃO PAULO SINNECKER, 52, doutor em física pela Unicamp, é pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e membro da IEEE Magnetic Society, dos EUA.

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