Lobby precisa ser regulamentado e tirado das sombras, defendem autores

Segundo Nelson Jobim e Luciano Inácio de Souza, atividade é alvo de campanha difamatória 

Nelson Jobim Luciano Inácio de Souza

Resumo Em adaptação de artigo que será publicado no livro "Lobby Desvendado" (Record), a ser lançado no dia 7/3, autores escrevem que o lobby é alvo de campanha difamatória pela mídia, defendem regulamentação específica da atividade e afirmam que, no Brasil pós-Lava Jato, não haverá mais espaço para atuação nas sombras.

 
jobim de terno
O ex-ministro Nelson Jobim - Mastrângelo Reino - 25.out.2017/Folhapress

A relação entre governo e grupos de interesse sempre desperta grande atenção, tendo em vista a peculiar situação limítrofe entre o certo e o errado, entre o lícito e o ilícito, entre o justo e o injusto que pode daí decorrer.

Acreditamos que o novo país que surgirá dos escombros dessa hecatombe que a cada dia se revela nos desdobramentos da Operação Lava Jato demandará uma forma mais responsável de defesa de interesse. Não haverá nesse novo mundo espaço para atuação nas sombras.

Nesse contexto, consideramos ser preciso discutir uma regulamentação específica para a atividade de lobby no Brasil. Também é preciso debater de que maneira isso pode refletir tanto em um revigoramento das relações público-privadas quanto no fortalecimento das instituições democráticas responsáveis pelo combate à corrupção.

O lobby, objeto de tanta discussão, não é novidade da sociedade moderna. O termo, como empregado hoje, tem raízes na palavra da língua inglesa que significa "antessala" ou "saguão", remetendo à atuação de pessoas que ficavam em uma sala intermediária no Parlamento britânico com o objetivo de influenciar políticos ou autoridades para que aprovassem ou rejeitassem medidas de seu interesse. Entretanto, alguns autores encontram na Bíblia a primeira menção sobre essa atividade.

Segundo Said Farhat, autor de "Lobby. O que é. Como se faz. Ética e Transparência na Representação Junto a Governos" (Peirópolis), o primeiro registro está no episódio bíblico de Sodoma e Gomorra.

Como se sabe, tendo em vista a situação de devassidão dessas cidades, o Senhor teria ordenado que Abraão abandonasse sua casa, pois Ele iria destruir as duas cidades.

Para Farhat, admitindo um pouco de licença poética, "a resposta de Abraão teria sido mais ou menos assim: 'Tudo bem. Se essa for a Sua decisão, obedeço. Mas podíamos conversar um pouquinho?'. Procurou então Abraão negociar com o Senhor, para que poupasse os habitantes daquelas cidades. Lá, segundo o patriarca, haveria mais de 50 justos, e não seria correto castigá-los todos por culpa de alguns poucos cidadãos transviados, corruptos ou infiéis".

Abraão não conseguiu alterar o destino daquelas cidades, mas esse teria sido o primeiro registro de uma atividade de lobby.

DEFINIÇÕES

A literatura define lobby como "o processo por meio do qual representantes de grupos de interesse, agindo como intermediários, levam ao conhecimento dos legisladores ou dos decision-makers os desejos de seus grupos. Lobbying é, portanto e sobretudo, uma transmissão de mensagens do grupo de pressão aos decision-makers por meio de representantes especializados" ("Dicionário de Política", UnB).

Contudo, por causa do desconhecimento do homem médio e de profissionais que distorcem a sua natureza, o lobby tem sido alvo de campanhas difamatórias na mídia. Não raro lemos nas principais manchetes dos grandes jornais atos de corrupção —frutos de atividades de tráfico de influência— tomados como lobby.

Por essa razão, e até mesmo em função da sofisticação que essa atividade vem adquirindo nos últimos anos, muitos consideram que a melhor expressão a designá-la seria relações governamentais.

Há uma tênue diferença entre as duas expressões. "Relações governamentais" é um guarda-chuva que abriga não só o contato com parlamentares (lobby strictu sensu) mas também uma visão mais complexa, com análise de riscos e oportunidades, de cenários econômicos, jurídico-regulatórios e sociais, com técnicas de comunicação a fim de convencer decision-makers.

Para fins deste texto, adotaremos "lobby" como sinônimo de "relações governamentais" —por mais que, do nosso ponto de vista, a segunda expressão defina melhor a complexidade das atividades de defesa de interesse.

Dessa forma, pode-se dizer que o lobby é um fato da vida pública em democracias modernas. Uma vez observados os limites de ética e boa conduta, tem o potencial de promover a participação democrática no processo legislativo e de fornecer aos tomadores de decisão informações valiosas, facilitando o acesso das partes interessadas ao desenvolvimento de políticas públicas e implementações legislativas.

No entanto, muitas vezes a atuação de alguns indivíduos distorce o real sentido dessa atividade, tornando-a opaca e de integridade duvidosa, o que pode resultar em influência indevida, concorrência desleal, imparcialidades e políticas públicas direcionadas ao interesse de determinados grupos.

Por isso, é necessário adotar medidas de transparência que visem a garantir, em última análise, a continuidade da democracia.

Para a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), transparência é um fator vital para o fortalecimento das relações entre governo e cidadão, que se concretiza através de informações completas, objetivas, confiáveis, relevantes e de fácil acesso e compreensão.

No contexto das atividades de lobby, esforços para aumentar a transparência e a sua inclusão na formulação de políticas públicas garantem que os principais atores tenham acesso livre a informações atualizadas, públicas e relevantes sobre o processo de tomada de decisão.

REGULAMENTAÇÃO

Embora o Brasil tenha, a partir dos anos 2000, se destacado pelo rápido avanço na adoção de medidas de transparência, o país ainda não dispõe de lei própria para regulamentar o lobby. Todavia, vários projetos de lei foram apresentados nesse sentido desde 1977. O que tem a análise mais adiantada é o de nº 1.202/07, do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), que deve ser analisado pelo plenário da Câmara ainda neste ano.

Mesmo sem legislação específica em vigor, o lobby existe e é regulado indiretamente por dispositivos da Constituição, como liberdade de associação e de reunião, entre outros, e de regras internas da Câmara e do Senado.

Porém, a normatização disponível ainda é insuficiente. Isso resulta em margens para que práticas ilegais e desvios de finalidade possam ocorrer sem maiores supervisões.

O Brasil poderia olhar para outros países no intuito de corrigir essa defasagem. A OCDE elenca características importantes, tendo por base experiências internacionais, que podem contribuir com uma regulamentação eficaz, como:

(i) definição das atividades dos profissionais do lobby e grupos de interesse em disposições claras e inequívocas; (ii) regras de divulgação de informações dos trabalhos exercidos pelos profissionais dessa área; (iii) estabelecimento de regras e diretrizes de comportamento; (iv) procedimentos para assegurar estratégias, bem como aplicação de regras de compliance, integridade e transparência.

O fato de a América Latina ter vivido sob domínio autoritário, quando muitas decisões públicas foram tomadas "às escuras" em benefício de uma pequena minoria, parece ainda trazer consequências estruturais. Em última análise, as democracias da região têm pouca aptidão para mudanças profundas rumo a regras transparentes. Há um medo nesse passo.

Entretanto, vale destacar o Chile, que, após dez anos de discussão, tem a regulamentação da atividade.

Mesmo os Estados Unidos, com longa tradição em medidas de transparência e regulamentação do lobby, vez por outra se veem na condição de ter de revisar e reforçar suas diretrizes.

Claro que regras, por melhores que sejam, não evitam que os homens as burlem. Porém, quanto mais informações houver e mais bem regulada for essa relação público-privada, menores serão os potenciais prejuízos. Uma regulamentação moderna e seguindo os atuais padrões internacionais só tem a contribuir com o interesse público.

Acreditamos que o jogo deve ser jogado às claras. Após os últimos acontecimentos no Brasil, não há mais espaço para irresponsabilidades que possam, como estamos vendo, levar o país a uma paralisação e a uma grave crise, com a perda de conquistas sociais e econômicas.

O que está sendo levado a público pela Lava Jato nem de perto pode ser considerado algo técnico ou fruto da legítima defesa de interesses. O que se vê é a prática deliberada de crime que é indevidamente rotulada pela mídia como "defesa de interesse" e "lobby", nas piores acepções da palavra.

Por essa razão, é fundamental regulamentar essa atividade. Retirar o processo dos bastidores é necessário para prover simetria no fluxo de informações e dar à sociedade o conhecimento sobre a atuação de cada candidato eleito e sobre os grupos com que se envolve.

Essa transparência permitirá melhor e mais eficaz atuação dos grupos de interesse e profissionais de lobby. Dessa forma, sim, pode haver fortalecimento da democracia.


Nelson Jobim, 71, advogado, foi ministro do STF (1997-2006), ministro da Justiça (governo FHC) e da Defesa (governos Lula e Dilma).

Luciano Inácio de Souza, 42, advogado, é mestre em direito pela Universidade de Georgetown.

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