Lygia Fagundes Telles representa as mulheres de uma geração inteira

Anna Veronica Mautner homenageia a escritora, com quem conviveu quando universitária

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Lygia Fagundes Telles lendo livro antigo
Lygia Fagundes Telles lê em 1967 - Folhapress

É difícil imaginar, hoje em dia, como viviam as mulheres letradas na década de 1950.

Naquele tempo, mulheres como eu, que tinham em torno de 20 anos, se encontravam com as amigas em bares de esquina perto da escola. Era uma nova experiência. Nossas mães e avós não tinham liberdade de ir a barzinhos nem durante o dia, que dizer à noite.

É verdade que, já naquela época, muitas mulheres trabalhavam: funcionárias públicas, médicas, dentistas, professoras. Mas a vida social era em casa. Uma mulher só saía para trabalhar, fazer compras ou ir ao banco. Então era assim que se dizia ao sair para encontrar amigas: "Vou às compras". Na verdade, iam mesmo era bater papo.

Lygia Fagundes Telles viveu a transição daquela época para a atual na consciência e na pele. Nós, moças de família e de faculdade, fomos "escorregando", ficando na rua até mais tarde, até ver o escurecer, conversando em mesas de bar.

Lygia estava na faculdade de direito do largo São Francisco, e eu cursava ciências sociais na Maria Antonia. Eram poucas as mulheres nas faculdades; então, o simples fato de estudarmos e gostarmos de escrever era o suficiente para nos aproximar. Não éramos íntimas, mas nos encontrávamos sempre.

Ela não tinha o que se imagina uma aparência típica de intelectual. Além de inteligente era bonita, charmosa e elegante.

Nosso "quintal" era a rua Maria Antônia, sede do curso de filosofia e ciências sociais. Também circulávamos pela Biblioteca Municipal, na praça Dom José Gaspar, um pouco na rua Marconi, um pouco na Consolação e na 7 de Abril —área intelectual da cidade. Lá as mocinhas podiam circular sem serem mal vistas, já que era em torno de livro, teatro e cinema.

Nessa época, as Redações de jornal tinham, quando muito, duas ou três mulheres nas áreas de educação e culinária. No Ministério da Educação eram mais numerosas, controlando o vai e vem da burocracia. A Biblioteca Nacional tinha muitas bibliotecárias, mas não era dirigida por uma mulher —e não que elas não fossem competentes.

Na faculdade, Lygia conheceu Mário de Andrade e Oswald de Andrade. A carreira literária seguiu em paralelo à advocacia: Lygia trabalhou, até a aposentadoria, como procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo.

Era comum que as mulheres de então se envergonhassem ou se sentissem humilhadas quando não tinham marido e filhos. Mas muitas eram solteiras. Uma das vitórias do nosso tempo é o desaparecimento do estigma da "solteirona".

Lygia não enfrentou esse problema —no ano seguinte à formatura, casou-se com Goffredo da Silva Telles Júnior. Anos depois e sempre na contracorrente da época, divorciou-se e, em 1962, casou-se com Paulo Emílio Sales Gomes, morto em 1977.

A figura da mulher profissional é a grande novidade do nosso tempo. A mulher o é por livre escolha, não por imposição de circunstâncias negativas nem em consequência de alguma frustração. E, nos dias de hoje, a grande profissional pode acumular também uma grande função de mãe de família.

Lygia Fagundes Telles foi uma mulher à frente do seu tempo. Com coragem e liberdade, quebrou vários tabus. Conseguiu harmonizar família e carreira. Teve uma trajetória pautada por todos os principais prêmios literários do Brasil.

Teria sido difícil para sua mãe ou sua avó, que viveram nos anos 1950, imaginar que Lygia chegaria em 2016, aos 92 anos, a ser a escritora brasileira indicada ao Prêmio Nobel de Literatura.


Anna Veronica Mautner, 82, é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (Ágora).

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