Descrição de chapéu Memorabilia

'Mafalda me fez brilhar uma faísca lá no íntimo', escreve Laerte

Cartunista é 1ª convidada da seção 'Memorabilia', novidade da 'Ilustríssima'

A "Ilustríssima" estreia nesta sexta (16) a  seção "Memorabilia", que substitui o "Arquivo Aberto". Nela, personalidades discorrerão sobre um trabalho artístico que tenha sido importante em sua trajetória pessoal ou profissional. O primeiro texto é assinado pela cartunista Laerte, que fala de sua admiração pelas tirinhas de "Mafalda", criação do argentino Quino.

 
laerte lendo quadrinhos
Desenho exclusivo feito por Laerte para a nova seção da 'Ilustríssima' - Laerte

Laerte Coutinho

Quando perguntada, eu digo que minhas influências principais vêm de quatro fontes: o pessoal do "Pasquim" (Fortuna, Ziraldo, Henfil, Jaguar), o underground americano (principalmente Robert Crumb), o humor gráfico francês do "Harakiri" e do "Charlie Hebdo" —e Quino.

Conheci as histórias da Mafalda no final dos anos 1960, trazidas pelo [diretor e artista plástico] Naum Alves de Souza, com quem fazíamos teatro amador na Faap (Fundação Armando Alvares Penteado). Não estavam traduzidas: foi onde aprendi a ler espanhol, assim como aprendi francês com o Asterix.

Nessa época, passei a achar lindo xingar alguém de "zanahoria!" ["cenoura" em espanhol].

Havia naquelas tiras algo bem distinto do underground americano e da violência do humor francês. Era uma linguagem não digo arrumadinha, mas organizada, bem distribuída.

Ao mesmo tempo, tinha esse ar de vizinhança, que identifico em todo trabalho argentino. E isso fez brilhar uma faísca lá no íntimo, um elemento de identificação pessoal muito forte. Senti como se aquele trabalho fosse, ou pudesse ser, meu.

Quando isso acontece —é raro, mas aconteceu mais de uma vez—, representa um perigo, porque posso acabar dando uma plagiada sem querer. Ou com querer.

Não só com desenho: senti consanguinidade parecida ouvindo alguns compositores. Mas eu já tinha desistido de ser música, e uns anos depois desse contato fecundo com "Mafalda", fui tentar minhas tiras.

O [pintor e jornalista] Zélio Alves Pinto [um dos fundadores do "Pasquim"] se propôs a nos apadrinhar no "Jornal da Tarde", tentando ampliar o território nacional nas tiras. Nós, aí, éramos o Alcy, o Angeli... Não lembro quem mais estava nessa.

Fiz algumas propostas, bebendo em grandes goles na fonte quinônica: uma delas era uma sequência sobre um marciano que chegava à Terra; outra se passava num circo mambembe. Elas não foram muito longe.

Acabei fazendo uma série que se passava num prédio, onde o zelador e o síndico contracenavam com um desfile de condôminos. Aproveitei essa última dez anos depois, para fazer uma tira para a Agência Funarte, quando o Ziraldo convocou a gente.

No meu trabalho, nunca fui muito de personagens. Conto com elas como fruto das histórias que vou fazendo, mas não produzo mais séries baseadas nelas.

Sempre achei curioso que o Quino não trabalhasse seus personagens fora das tiras da Mafalda. Fico tentando descobrir, nos seus cartuns, traços do Felipe, do Miguelito, da Susanita. Estão lá, mas como lembranças.

Eu nunca cheguei nem perto do que mais admirava nas tiras do Quino —uma profunda conexão entre o desejo autoral, a mão do Quino e uma incrível autonomia das personagens.

A Mafalda em si —a protagonista— nem me parecia a figura mais marcante. Pra mim, sempre foi o Felipe, com suas inseguranças, rompantes e bravatas, seu terror em relação à seriedade do mundo.

O modo como Quino trata o Manolito, deixando sempre um espaço de expressão generoso, para além da marca óbvia da sua praticidade mercantil e seu amor pelos negócios. Ou a Susanita, ou o Miguelito —sempre fugindo da redução às marcas mais patentes de cada uma.

É conhecido o fato de "Mafalda" ter sido criada para promover um produto comercial, mas o arranjo se desfez e a tira continuou com vida própria.

Tentei essa flexão uma vez, fazendo uma série que promovia um aparelho celular, nos anos 90 —"Orlando, o Vestibulando". Eu tinha liberdade para criar situações desvinculadas do produto e falei para a minha mão seguir o exemplo do Quino.

Mas a liberdade tem que acontecer lá dentro, pra funcionar...


Laerte Coutinho, 66, é uma das cartunistas mais destacadas do país. Faz charges para a Folha e, em 2017, organizou o volume "Baiacu" junto com Angeli.

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