Maquetes de artista sírio contam a história da destruição da guerra

Mohamad Hafez, que mora nos EUA, começou trabalho por nostalgia

Diogo Bercito

Resumo Artista sírio radicado nos EUA, que fazia miniaturas de casas de Damasco por nostalgia, passou a reproduzir edifícios destruídos nos bombardeios à cidade. Com técnica secreta, ele produz maquetes realistas que parecem ser de concreto e ferro, mas são leves o suficiente para serem exibidas penduradas na parede.

 

Mohamad  Hafez encolheu sua própria tristeza. Radicado nos EUA desde 2004, o artista e arquiteto sírio viu pela televisão, a partir do início da guerra civil em 2011, a destruição de seu país. Em choque, ele assistiu a imagens nas quais a arquitetura tradicional da capital Damasco era reduzida a pó.

Para escapar de uma depressão diante do contínuo sumiço de sua cultura e história, Hafez decidiu recriar a devastação de sua cidade natal em seu estúdio em New Haven, Connecticut, construindo maquetes das fachadas esfaceladas.

Um de seus principais trabalhos nessa série, "Intisarna" (2016), retrata, sobre uma placa quadrada de 122 centímetros de altura e largura, um edifício damasceno destruído. Exposta em uma parede, a obra escancara as entranhas de um prédio em ruínas: varais estendidos entre tetos tombados, escadas carcomidas, vigas expostas e, ao centro, uma minúscula cadeira de madeira sem um braço.

O título significa, em árabe, "nós vencemos" —uma ironia de Hafez diante da destruição promovida por Bashar  al-Assad, que comanda o regime sírio desde 2000 e é responsável por ataques e cercos contra as cidades de seu próprio país.

"Há toda essa propaganda da guerra, com o discurso oficial de que 'nós matamos todos os terroristas' e 'vamos reconstruir a nação juntos'. Mas eu tento mostrar, com essa obra, todo o absurdo da violência que é utilizada pelo Estado no conflito. É como se tivéssemos um rato no apartamento e decidíssemos queimar todo o prédio."

SAUDADE

Nascido na Síria em 1984 e criado na Arábia Saudita, Hafez se mudou para os EUA aos 19 anos para estudar arquitetura. Receoso de perder o visto se retornasse ao seu país natal, o sírio passou oito anos sem rever sua cidade e as construções tradicionais que tanto admirava. Viu-se, de repente, acometido pela "ghurba" —termo em árabe que descreve sensação semelhante à saudade, uma nostalgia somada ao sentimento de não pertencer a um lugar.

Logo em seu primeiro ano nos EUA, os colegas de curso resolveram ir a um bar em uma sexta-feira. Hafez —que, como tantos outros muçulmanos, não bebe— preferiu ficar em casa. Colocou os clássicos da libanesa Fayruz para tocar e começou a explorar os materiais que tinha ao seu redor. "Cinco ou seis horas depois me dei conta de que tinha recriado a fachada de uma casa tradicional síria", ele conta.

Damasco é considerada a capital mais antiga do mundo e uma das cidades habitadas continuamente há mais tempo. Sua arquitetura combina milênios de história, misturando influências gregas, romanas, bizantinas, árabes e otomanas.

Hafez passou a enfeitar seu estúdio com maquetes de casas sírias, usando a técnica aprendida na faculdade. O trabalho miniaturizado era oposto ao que desempenhava em horário comercial, projetando arranha-céus para uma firma de arquitetura americana.

Em 2011, porém, com o início da guerra na Síria, ele interrompeu a produção de maquetes. Em seu país natal, bairros e cidades inteiras eram destroçados por bombas, e hoje estima-se que os mortos já somem meio milhão.

"Nos dois primeiros anos de guerra civil, eu não peguei uma caneta na mão. Estava chocado com a destruição. Era extenuante ver, a distância, como tantas cidades eram transformadas em poeira."

Em 2013, Hafez decidiu retomar a série de maquetes e forçou as miniaturas a acompanharem o que estava acontecendo na realidade, transportando a destruição dos prédios para sua arte: "Se meu trabalho era inicialmente sobre a nostalgia, hoje é mais sobre a devastação, e essa transição não foi planejada. É como a história: apenas aconteceu. As miniaturas são uma linha do tempo".

Paralelamente a esse trabalho, o sírio abordou em outra série a crise dos refugiados, criando miniaturas de casas e cidades colocadas dentro de malas, para mostrar os diversos mundos que os migrantes carregam consigo. Era outra maneira de pôr sua própria linha do tempo em sua arte: nos últimos anos, sua família abandonou a Síria e pediu asilo na Suécia.

Hafez descreveu à Folha os materiais que usa em sua mágica de transformar elementos leves em uma maquete aparentemente pesada, mas prefere que a técnica permaneça secreta: "Quero que os espectadores pensem que as miniaturas são feitas de concreto, como os prédios, para que pareçam prestes a desmoronar", afirma. "Se meu trabalho não tiver esse efeito, o risco é de que se torne uma casa de boneca, e odeio isso. Não são casas de boneca!"

DETALHES

A preocupação em evitar que as miniaturas se tornem, em suas palavras, "kitsch", faz com que Hafez se debruce por meses em cada peça, cuidando, com esmero, de cada detalhe: "O realismo é o que cativa a maior parte das pessoas. Só sei que uma peça está pronta quando tiro uma fotografia dela de perto e me parece real".

Para Hafez, a questão teórica que pauta seu trabalho é: "De que maneira a arquitetura pode contar uma história?". Esse foi também o fio condutor de outras obras, como suas maquetes da infame prisão iraquiana de Abu Ghraib, onde soldados americanos torturaram detentos, em sua maioria árabes.

O artista defende, ainda, que as miniaturas são capazes de sensibilizar o público de formas que reportagens e incontáveis postagens de Facebook não conseguem.

Uma exposição recente de suas maquetes na Universidade de Yale mostrou que o trabalho também convenceu os críticos. Frauke  Josenhans, curador da mostra, disse ao "New York Times" que a obra do sírio o fascinou por completo: "Ele ilustra o conflito na Síria, mas não é apenas algo político. É também profundamente pessoal e reflete o que significa não poder voltar ao seu país, estar separado da família".

Como arquiteto e partindo de sua paixão pela arquitetura tradicional síria, Hafez retrata a destruição ao mesmo tempo em que se pergunta quanto de sua herança poderá —se de fato puder— ser recuperada: "A reconstrução dependerá do nível de destruição. Será especialmente difícil porque nunca houve nenhum esforço para documentar a arquitetura local. Nós pensávamos que essas construções fossem durar para sempre. Elas estavam ali havia séculos!".

Ele evita sucumbir ao pessimismo, mas reconhece que boa parte do que desmoronou jamais será reerguida. Acha que o futuro será semelhante à reabilitação da Europa após a Segunda Guerra Mundial. "Foi feita uma escolha seletiva daquilo que seria reconstruído e do que seria feito de novo, do zero."

Hafez também destaca o descuido do governo como fator de destruição: "A negligência é bastante comum em nossas culturas e afeta a preservação da arquitetura".

Segundo ele, tanto no Brasil quanto na Síria "a poluição cobre os prédios com uma fina camada negra e as pessoas não cuidam do exterior das construções. Instalam equipamentos de ar-condicionado em fachadas históricas. Isso aparece em meu trabalho de maneira sutil, por exemplo, quando você vê um cano exposto em uma bela parede exterior".

Ao final, a Folha pergunta se suas miniaturas também poderiam ser usadas para projetar um futuro, imaginando como será a Síria quando for finalmente reconstruída, após o conflito. Isto poderia ajudar a curar a sua ferida? "Eu ainda não estou pronto para isso", diz. "Talvez um dia."

 

Diogo Bercito, 29, é correspondente da Folha em Madri.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.