Neuropsicanálise mostra acerto das teorias de Freud, diz escritor

Segundo M. M. Owen, ataques à biografia do austríaco não diminuem sua relevância histórica

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M. M. Owen

Resumo Autor argumenta que o campo da neuropsicanálise, ao juntar achados da neurociência com ideias da psicanálise, mostra o acerto de muitas das teorias de Freud. Ele ainda afirma que ataques à biografia do austríaco não diminuem sua relevância histórica nem reduzem a pertinência atual de várias de suas ideias. 

 
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Para recorrer a uma técnica que ele próprio desenvolveu: quando você ouve "Sigmund Freud", que associações surgem em sua mente? Divãs? Sonhos obscuramente reveladores? Um falicismo devorador? É provável que a resposta seja uma colagem imprecisa.

O austríaco foi um dos pensadores mais influentes do século 20, mas caiu em desgraça intelectual.

Fora da área acadêmica de humanas, a psicanálise com frequência é vista como relíquia pálida, uma coleção de ideias bizarras que seguiu a frenologia [segundo a qual seria possível determinar caráter e grau de criminalidade de alguém a partir do formato de seu crânio] e o mesmerismo [uso de magnetismo animal e hipnotismo no tratamento de doenças] rumo à cesta de lixo das teorias psicológicas.

O que deu errado?

Ilustração de Gabriel Centurion para a central da Ilustríssima
Ilustração - Gabriel Centurion

Em 1996, o escritor e jornalista norte-americano Tom Wolfe afirmou: "O fim do freudismo pode ser resumido em uma única palavra: lítio". Ele descreveu como, no início da década de 50, após anos de ineficiência da psicanálise, os pacientes com distúrbio bipolar encontram um método de alívio físico rápido em forma de pílula.

O exemplo de Wolfe serve como mostra microcósmica da situação mais ampla. Um século depois de Freud, vivemos em meio ao que o filósofo Thomas Metzinger definiu como uma grande "virada naturalista na imagem humana". O ocaso da psicologia corresponde exatamente à ascensão da neurociência moderna, cuja abordagem materialista agora propele a psiquiatria.

A receita médica para um inibidor seletivo de recaptação de serotonina (um antidepressivo) é prescrita pois acreditamos que as emoções, no fundo, são um fenômeno físico.

Hoje, qualquer pessoa sabe o que é serotonina ou Prozac, ao passo que pouquíssimos seriam capazes de definir superego ou cena originária. Tentar curar nossas mentes por meio de sessões nas quais nos acomodamos num divã e recordamos momentos de drama infantil parece antiquado, amador, pré-científico.

A maré alta do materialismo filosófico, contudo, não foi o único fator a prejudicar a psicanálise. Nas décadas posteriores à morte de Freud (1856-1939), surgiram críticas cada vez mais severas à sua personalidade, aos seus métodos e a seu legado. A mais recente está em "Freud: The Making of an Illusion" (Freud, a construção de uma ilusão), de Frederick Crews.

Tendo iniciado sua carreira na crítica literária psicanalítica, Crews passou a dedicar-se a desmantelar a reputação de Freud. Seu livro, impulsionado por correspondência recém-revelada, é um ataque de 768 páginas ao legado e ao caráter do austríaco, reduzido a mentiroso, narcisista e charlatão.

Como responder à dupla acusação de que a psicanálise é um amontoado de bobagens sem base empírica e jamais confirmadas e de que seu fundador é uma espécie de Donald Trump do intelecto? Será que pode haver alguma coisa digna de salvação no legado de Freud?

LEGADO

Sim, pode. Para começar, a noção de que suas ideias definharam diante das ciências modernas da mente não procede de todo. É claro que Freud errou muito —às vezes, até de maneira absurda e espalhafatosa—, mas ele não errou sobre tudo e parece ter acertado quanto a algumas das coisas mais importantes, pelo menos em termos abstratos.

Nos últimos anos, emergiu um campo de estudo chamado neuropsicanálise. Os adeptos desse programa de pesquisa —liderado pelo neuropsicólogo e psicanalista sul-africano Mark Solms— estão ansiosos por reabilitar a reputação de Freud na era do cérebro.

Os neuropsicanalistas nos fazem lembrar que o austríaco iniciou sua carreira na neurologia e acreditava que, um dia, suas teorias seriam combinadas com o estudo empírico de nossas células cinzentas —e argumentam que esse dia chegou.

Freud considerava que, ao longo da história, a humanidade sofreu três ataques ultrajantes ao seu ingênuo amor-próprio. Primeiro veio Copérnico, que nos tirou do centro do Universo; depois, Darwin demonstrou que somos parte do reino animal; por fim, Freud revelou, por meio da psicanálise, que o homem "nem mesmo era mestre de sua própria casa", devido aos efeitos do inconsciente.

De modo geral, a neurociência apoia Freud no terceiro ataque. A ideia de um inconsciente vasto e poderoso, que é central na psicanálise, vem sendo comprovada por exames de ressonância magnética. E a neurociência moderna se fundamenta no fato de que nossas mentes conscientes têm acesso a pouca coisa em nosso cérebro.

Ilustração de capa da Ilustríssima - Gabriel Centurion

No livro "The Age of Insight" (a era do insight), o neurocientista Eric Kandel, ganhador do Nobel de Medicina (2000), aponta outros dois acertos de Freud. Ele concorda que "os instintos de agressão e os anseios sexuais são parte integral da mente humana e de nosso genoma, assim como os instintos de comer e beber", e que "a vida mental normal e a enfermidade mental formam um contínuo".

Em resumo, a evolução da ciência levou alguns dos mais influentes estudiosos do cérebro da atualidade —Kandel, António Damásio, Joseph LeDoux e V. S. Ramachandran, entre outros— a conferir a Freud o crédito que ele merece.

Além de fazer a mediação da ciência moderna com a teoria psicanalítica, a neuropsicanálise ainda ecoa algo de mais profundo do projeto de Freud.

Nos debates e nas tentativas —ocasionalmente refutadas— de reaproximar as duas teorias, a neuropsicanálise dramatiza a tensão entre duas maneiras de pensar sobre o que significa ser humano: como sujeito e como objeto. Ou, para usar um dualismo que saiu de moda: como mente e como cérebro.

No ambiente fisicista que prevalece hoje —no qual você não passa do conjunto das imagens feitas de seu cérebro—, a introspecção saiu de moda. É raro que os conceitos modernos de melhora pessoal se baseiem em outra coisa que não um apelo aos nossos seres físicos, carne e osso.

Consideramos a felicidade, o que quer que isso seja, como basicamente um desafio físico. Você talvez já tenha reparado que, hoje em dia, as pessoas não tomam sol ou se exercitam. Elas "repõem vitamina D" e "liberam alguma endorfina".

Um amigo me disse recentemente que havia se recuperado de uma depressão graças à "dieta páleo para o cérebro": ritmos naturais de sono, longas caminhadas, muita verdura. Não é Prozac, mas o método continua o mesmo: alguma coisa externa que age sobre a fisiologia para conferir mais bem-estar.

MENTE

Em contraste, a psicanálise tem por base a crença fundamental de que a experiência subjetiva é primária; o pensamento tem poder. Seu modelo terapêutico se baseia na fala. Falar por horas e horas, muitas vezes, por anos e anos. A posição básica da psicanálise confere muito poder ao analisado: a mente tem seus recursos e, se você aprender a olhar para dentro de si mesmo da maneira certa, pode discernir e mapear sua paisagem interna.

Como diz a escritora Siri Hustvedt, a única questão que precisa ser levantada para avaliar a psicanálise é: "Falar pode libertar a pessoa de seus sintomas?". Há uma crença básica de que a subjetividade seja capaz de fazer o trabalho por si só.

Essa tensão entre as ciências do cérebro e a psicanálise é a mesma que existe no cerne do chamado "difícil problema da consciência": o confronto aparentemente irreconciliável entre os relatos objetivos e subjetivos da realidade.

O cerne do projeto da neuropsicanálise pode ser apontado como a dedicação ao valor do ponto de vista de primeira pessoa e a tentativa de levá-lo à neurociência.

Solms explica que a neuropsicanálise não se interessa realmente pela longa e labiríntica história da psicanálise, mas sim pela atitude filosófica original de Freud, que combinava respeito às ciências naturais e foco nos mundos subterrâneos da psique individual.

"A psicanálise não é importante", diz Solms. "Não precisamos de Freud; precisamos de uma abordagem que leve a sério a natureza mental da mente. E porque foi Freud quem o fez de maneira mais completa, esse me parece ser o lugar certo para começar."

É por isso que não podemos satisfazer os Frederick Crews do planeta e simplesmente arrancar Freud do registro histórico. Uma abordagem subjetiva da mente continua a ter apelo profundo. E Freud, certo ou errado, foi o mais famoso proponente dessa abordagem.

MAIS QUE FREUD

"Admirável Mundo Novo" (1932), de Aldous Huxley, é uma das mais famosas distopias literárias de todos os tempos precisamente porque vê a substituição completa da introspecção por intervenções fisiológicas perfeitamente calibradas.

Muitos de nós, lá no fundo, queremos que nossa vida interior —nossas ideias sobre nós mesmos, nosso senso sobre o que tememos e o que desejamos— tenha relevância. Há vaidade nisso. Mas também honestidade. Todos sentimos que apenas uma abordagem que considere a realidade singular de cada um poderá fazer justiça ao que o romancista Vladimir Nabokov definiu como "a maravilha da consciência —aquela janela súbita que se abre para uma paisagem ensolarada em meio à noite do não ser".

Freud —que se inspirou em Dostoiévski, Goethe e Shakespeare percebia a natureza profunda e misteriosa do ser consciente, individual. É por isso que a cultura não pode, e provavelmente não deveria, excluí-lo.

Isso não equivale a dizer que o retrato de Freud que emerge do livro de Crewso de um plagiário em busca de ascensão social e desejoso de riqueza material, o de um homossexual reprimido e viciado em cocaína, que traía sua mulher com a irmã dela— não seja verdadeiro. Pode bem ser que o seja.

Mas deixando de lado o fato de que há muitos grandes pensadores com biografias dúbias —uma lista rápida incluiria Heidegger e seu flerte com o nazismo, Sartre e sua decisão de desconsiderar o Gulag, Thomas Jefferson e os filhos que teve com suas escravas—, há um aspecto mais amplo: Freud hoje é mais do que Freud. Ele se evaporou em suas ideias —ou, simplesmente, no espírito de suas ideias.

A neuropsicanálise reconhece esse fato e faz uso da perspectiva freudiana em seu sentido mais amplo, como forma de empreender o projeto, muito válido, de complementar o estudo do cérebro com o estudo da mente. Pode ser que Freud tenha se apoderado de ideias alheias, copiado propostas terapêuticas de outros médicos, recorrido a toda espécie de subterfúgio —mas, no estranho jogo das reputações históricas, ele venceu.

Isso talvez seja completamente desmerecido, uma abominação histórica, mas o fato é que ele, e não outra pessoa, simboliza a priorização deliberada e terapêutica da mente subjetiva, testemunhal.

Aqueles para quem essa perspectiva sobre a vida importa não têm escolha a não ser pensar —e trabalhar— à sombra de Freud.


M. M. Owen, 31, é escritor e doutor em literatura pela Universidade de Columbia. 

Paulo Migliacci, 49, é tradutor.

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