Nova York tem mostras que abordam do Vietnã a Tennessee Williams

Festa exuberante de Ano-Novo chinês também animou Manhattan

Silas Martí

O frio glacial não impediu um desfile exuberante. Em plena Semana de Moda de Nova York, uma turba de fantasiados com altíssima tolerância para as temperaturas inclementes do inverno abarrotaram os jardins e galerias do PS1, o anexo do MoMA no Queens, para celebrar o Ano-Novo chinês.

O coletivo de DJs e artistas Bubble_T armou a festança e o estilista Bailey Skye, famoso pela construção de looks descritos por fashionistas como "baby techno" ou "dreamcore", mostrou sua novíssima coleção numa passarela de celofane vermelho no meio da pista de dança em êxtase.

Meninos e meninas de saltos de acrílico com pompons, casacos de volumetria surreal —que pareciam inspirados no mobiliário dos irmãos Campana—, biquínis de lamê, girassóis adornando cabelos rosa-choque e muitos paetês fizeram a festa do ano do cachorro lembrar um carro alegórico em convulsão nessa terra onde não há Carnaval.

O grito de liberdade da diáspora asiática no museu do Queens não poderia contrastar mais com as famosas rampas em espiral do Guggenheim, em frente ao Central Park, agora ocupadas pela potência austera da retrospectiva do artista vietnamita Danh Vo.

Estão lá reproduções de pedaços da superfície da Estátua da Liberdade, lustres de cristal do hotel Majestic em Paris, onde foi assinado o primeiro e inútil cessar-fogo da Guerra do Vietnã, e o que sobrou das poltronas do gabinete de John Kennedy, que Vo comprou num leilão e destruiu.

Instalação "We the People", do artista plástico Danh Vo, na Bienal de Charjah. - Divulgação

Os pedaços de madeira estão espalhados como esqueletos pelo museu. Nas paredes, o artista pendurou retalhos flácidos do estofado como o escalpo de um derrotado, alguns deles ao lado de cartas em que Henry Kissinger, o chanceler americano da época do conflito no Sudeste Asiático, lamenta não poder ir ao balé do Metropolitan por estar administrando a guerra.

Nas obras de Vo, a violência está nas entrelinhas. É o tecido nervoso que se agita por baixo de superfícies muitas vezes brilhantes, feitas para ofuscar e deslumbrar, como a pele de mármore de estátuas gregas que ele compra e corta em pedaços. Muitas vezes fundidos a restos de outras esculturas, esses cacos constroem híbridos bizarros, um Frankenstein a espelhar todas as injustiças do planeta.

Muito perto dali, no Met Breuer, o anexo do Metropolitan, uma mostra de Leon Golub (1922-2004) também reflete sobre a violência desmedida da Guerra do Vietnã. Nas pinturas do artista americano, soldados no campo de batalha são figuras esquálidas, guerreiros que tiveram a pele derretida pelas explosões.

Brasileiros vão reconhecer, numa ala mais sutil da exposição, um rosto que traz à tona lembranças de outro momento sombrio. Golub fez uma série de retratos de Ernesto Geisel. O semblante plácido e sorridente do quarto general a comandar o país durante a ditadura aparece ali entre outros homens associados ao poder e à violência.

CANIBAL CONCRETO

Um lado mais alegre do Brasil ocupa agora duas galerias no MoMA, que acaba de inaugurar a primeira mostra de Tarsila do Amaral (1886-1973) nos EUA.

Lá, o público pode ver o "Abaporu" e o "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade, que usou a imagem do canibal como símbolo máximo de seu movimento.

mulher fotografa abaporu
Visitante em mostra de Tarsila do Amaral em Nova York. - Timothy A. Clary/AFP

Outro banquete visual é servido no Museu de Artes do Bronx, que abriga uma retrospectiva de Gordon Matta-Clark (1943-78), artista famoso por rachar casas ao meio e cavar buracos em prédios abandonados, numa exploração visceral da anatomia da arquitetura. Ali, são mostradas imagens do Food, restaurante criado por ele no SoHo pré-gentrificação da década de 1970, onde a nata do minimalismo americano criava cardápios e tentava digerir a transformação da cidade.

A DOENÇA E A CIDADE

Ecos da ressaca dos excessos daquela época, culminando na destruição causada pela epidemia da Aids, estão nas fotografias de Peter Hujar (1934-87) na Morgan Library.

Um dos nomes menos lembrados dos anos que viram surgir Nan Goldin e Robert Mapplethorpe (1946-89), ele retratou o submundo das drag queens nova-iorquinas, seus amantes que definharam, e as mudanças no skyline de uma Manhattan que aos poucos deixava de ser o epicentro da experimentação artística para se tornar uma terra de butiques e ostentação vazia.

Outra mostra em cartaz ali reúne as primeiras versões de peças célebres de Tennessee Williams (1911-83), autor de "Um Bonde Chamado Desejo" e "Gata em Teto de Zinco Quente".

Quem quiser se lembrar do lado mais boêmio do dramaturgo pode ver seu rosto no mural do Monkey Bar, restaurante da moda no porão do Elysée, hotel onde Williams costumava dar festas e foi encontrado morto, engasgado com uma tampinha de colírio.


Silas Martí, 33, é correspondente da Folha em Nova York.

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