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O dia em que Zé do Caixão cortou as unhas no palco do Sepultura

Fernando Costa Netto, ex-editor do "Notícias Populares", lembra amizade com artista

zé do caixão com mulheres de vermelho
Zé do Caixão em show do grupo Sepultura no qual cortou suas unhas, em 1998 - Flávio Florido - 14.mar.1998/Folhapress
​Fernando Costa Netto

Em fevereiro de 1997 assumi a Redação do "Notícias Populares" e, um mês depois, já estava sentado com dois ícones do jornal: Rita Cadillac e José Mojica Marins, o mestre do terror e criador do Zé do Caixão —a criatura que havia aterrorizado a minha infância lá nos anos 70, num programa do Canal 13 chamado "Cine Mistério".

Semana sim, semana não, Mojica dava o ar do sinistro na redação do "NP", no quinto andar da rua Barão de Limeira, 425. E —não poderia ter sido diferente— nos tornamos amigos. Fui convidado, inclusive, a ser seu padrinho de casamento —que, pena, acabou sendo desmarcado na última hora.

A cartilha do jornalismo ensina que não devemos nos envolver com os personagens das nossas reportagens nem com as nossas fontes, mas essa regra eu ignorei; Mojica estava acima de qualquer emenda.

Foram cinco anos de muitas conversas e pautas das mais excêntricas: Zé do Caixão invade o Carandiru; Zé do Caixão é infiltrado no treino do Timão; Zé do Caixão busca sucessor entre centenas de candidatos no Centro de Tradições Nordestinas; Zé do Caixão assusta a clientela em puteiros do centro.

E, sempre que podia, Zé do Caixão apontava as barbaridades do então governador Mário Covas (1930-2001), num fim de década que registrava em torno de cem chacinas por ano, número mais que três vezes superior ao atual. Se você acha que São Paulo é violenta, é porque não estava aqui de 1997 a 2000, época mais sanguinolenta da cidade.

Numa reunião de pauta, colocamos na mesa a possibilidade de Zé cortar as garras. E assim foi. Acertamos tudo e ele avisou que, tão logo isso estivesse consumado, ele iria "serrar a mão esquerda cenográfica pela primeira vez desde 1983, quando desencanou de vez do cortador de unha, e dar uma banana para alguns políticos corruptos".

No dia 10 de março de 1998, quando a banda Sepultura se apresentava numa casa de shows na avenida Celso Garcia, Zé do Caixão iria aprontar mais uma estrepolia que entraria para a história do terror nacional.

O ponteiro do relógio bateu meia-noite; Igor Cavalera parou o show e avisou que Zé do Caixão estava no recinto. Zé ganhou o palco, acompanhado de seu entourage bizarro, todos vestidos a caráter, e abraçou o músico.

Durante os 30 minutos seguintes, Grazielle —sua noiva, chamada à época de "Mulher Superior"— iniciou a poda das unhas mais famosas do Brasil.

O primeiro "clac" acho que foi o da unha do dedinho, que ele avisou pelo microfone que doaria pela internet. Na sequência, foi cortada a do anular, destinada à casa do apresentador Faustão, que faltou à homenagem. A do dedo do meio ficou para Igor, anfitrião da noite e "brother" do Mojica.

A do dedo indicador é uma herança deixada para mim e que recebi ali mesmo, no palco, das mãos de meu querido amigo, este ícone da arte popular brasileira.

Há 20 anos, sua unha mora numa redoma de acrílico na sala da minha casa. Intacta, como no dia em que a recebi. Uma lembrança de um cara genial, que escreveu, dirigiu e atuou em clássicos como "À Meia-Noite Levarei a Tua Alma" (1963), "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver" (1967), "O Despertar da Besta" (1969) e outras dezenas de fitas.

Coffin Joe, como é conhecido internacionalmente, tido como um gênio do terror, continua vivendo no centro de São Paulo. Está com quase 82 anos de idade e ainda querendo produzir.

Há alguns meses, lançou uma cachaça envelhecida em barris de carvalho que leva o seu nome. Procurem por ela e bebam com moderação, para não adentrarem no estranho mundo do Zé do Caixão.


Fernando Costa Netto, 58, é jornalista e fotógrafo. Sócio da DOC Galeria e fundador da revista "Trip", foi editor-chefe do extinto jornal "Notícias Populares".

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