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O filme de Babenco que revelou o Brasil a Guilherme Weber

'Pixote', visto em videocassete, é obra que marcou a vida do ator e diretor

Guilherme Weber

​Para enfrentar as plateias vazias das noites geladas do início de carreira em Curitiba, costumávamos dizer no camarim: "Hector Babenco na plateia".

Era um mantra que nos energizava: um de nós poderia ser escolhido para um de seus filmes. Anos depois, Wagner Moura me contou que o mesmo acontecia em Salvador; Babenco unia o país naquelas jovens esperanças.

guilherme weber
O ator e diretor Guilherme Weber - Bruno Poletti/Folhapress

Tive a sorte de ser um dos seus escolhidos: na minissérie "Carandiru e Outras Histórias" (2005) e em seu último filme, "Meu Amigo Hindu" (2015).

Em nossas conversas —sempre no registro da ironia e da provocação—, eu lhe dizia que ficava horrorizado ao pensar que meu cineasta brasileiro favorito era argentino e que me revoltava a consciência de que um argentino tinha me revelado o Brasil.

Em momentos de testemunha da sua deliciosa grandiloquência, eu dizia —e era seguido pela gargalhada de total confirmação de Babenco: "Ego, este argentininho que mora dentro de nós!".

Lembrar a circunstância em que se viu um filme é a prova de que ele foi decisivo. "Pixote, a Lei do Mais Fraco" (1981) me deu um ponto de referência inestimável para conhecer o Brasil e seu cinema.

 

Eram os anos 1980, e a chegada do videocassete tornava nossas vidas menos solitárias. Com os hormônios batucando na festa da pré-adolescência, fui até a locadora do final da rua em busca de algum universo. Sem coragem de passar na frente das fichas azuis dos eróticos —e menos ainda das vermelhas dos pornôs—, me restavam as fichas amarelas dos filmes brasileiros.

Naquela época, filme nacional para mim era um pastiche com som ruim, uma experiência que evitávamos, com ajuda das bilheteiras que avisavam: "É brasileiro" —deixando os espectadores conscientes de seu risco e, normalmente, esvaziando a fila.

Na locadora, vi escrito em amarelo as palavras definitivas "sexo" e "pornografia" e passei a mão na ficha sem precisar saber mais. Foi assim que comecei a ver "Pixote" e, sem saber o que me esperava, fui violado pelo Brasil.

Percepções vertiginosas do país iam invadindo a sala, chocantes, lír icas, desumanas, malditas, esperançosas, inabaláveis, medíocres, estarrecedoras. A pobreza na periferia mais rica e opulenta do país, uma sociedade criminosa sustentada por pequenos crimes, o reformatório como microescala nacional.

A partir dos olhos mínimos daquele menino, me apiedei do meu país e descobri a força revolucionária de seu cinema. Ser brasileiro passaria a ter outro peso e outra responsabilidade.

Lembro as cores que dividiam o filme em dois atos: o cinza frio do reformatório —micro-holocausto— e o vermelho laranja dos anúncios em neon do submundo da noite paulistana. Entendi, mais tarde, que "Pixote" é um filme sobre a violência do Estado contra os indivíduos, um libelo contra o extermínio da juventude pobre —que, ainda hoje, é um problema grave e uma vergonha nacional.

Tempos depois, conheci o cartaz do filme: o menino correndo nu, perseguido por um carro. Seu corpo acuado pelos faróis acesos me lembrou imediatamente a menina vietnamita fugindo de um ataque de napalm que tanto havia me impressionado em uma aula de história. Dois irmãos em tragédias.

pixote correndo de carro
Pôster clássico do filme 'Pixote' (1981), de Hector Babenco - Reprodução

Aquele menino, Fernando, viria a ser morto pela polícia, e isso tornava o filme de alguma maneira maldito, como se ligasse o que cura ao que fere. Aquela sessão de iniciação também me revelou profundo senso de empatia e algum romantismo descabido.

Lembro a família formada por Pixote e os garotos que foge m do reformatório, como garotos perdidos de "Peter Pan". Eles fazem uma viagem ao Rio de Janeiro, deixando um rastro de crimes.

Mas o que ficou na minha memória foi a pedra do Arpoador, onde estão Pixote e a travesti Lilica, que canta, de olhos molhados pelo mar, "Força Estranha", do Caetano ("estive no fundo de cada vontade encoberta").

Lilica é uma força vital no filme, como se a afirmação de seus desejos a impulsionasse para a vida, mesmo que por caminhos tortos. Provocando seu namorado, ela ouve um "Porra, não fode, Lilica", que rebate, solar, lírica e despudorada: "Fodo sim!".

Há muitos vãos para o dese jo de amor em "Pixote", e cada um deles me salvou. Como o que fere e o que cura. Esperando a fita rebobinar, eu já era um outro.


Guilherme Weber, 45, é ator, diretor de teatro e cinema e curador do Festival de Teatro de Curitiba.

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