Reformas para o Brasil ganhar espaço no tabuleiro mundial

Armínio Fraga e Robert Muggah analisam mudanças na ordem liberal

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Armínio Fraga, sócio da Gávea Investimentos e ex-presidente do Banco Central - Leo Pinheiro/Valor

Resumo Autores analisam a atitude ambígua de países latino-americanos diante da rápida transformação da ordem liberal mundial. Argumentam que o Brasil, em particular, tem diante de si a oportunidade de reformular sua política e sua economia e, no processo, se reposicionar no tabuleiro das relações internacionais.


A ordem liberal internacional está sob ataque. O compromisso assumido sete décadas atrás pelos países ocidentais quanto a segurança comum, mercados abertos e democratização está perdendo a força. A ascensão espetacular da China e o relativo declínio dos Estados Unidos e da Europa ocidental estão entre as principais causas. O populismo reacionário e a crescente desigualdade de oportunidades e de renda nas economias mais avançadas também têm sua parcela de culpa.

Nesse processo, o mundo passa por rápida transição para uma ordem multipolar, tendo China e EUA no centro, com repercussões dramáticas e potencialmente perigosas. A despeito de terem se beneficiado da ordem liberal internacional, muitos países latino-americanos, especialmente o Brasil, reagem de forma ambígua diante do fim desse quadro e até parecem aliviados. Isso é um erro.

Para compreender o agnosticismo latino-americano, é preciso recuar ao nascimento da ordem liberal internacional, em 1945. Estabelecida pelo então presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, e seus aliados europeus pouco depois do final da Segunda Guerra Mundial, essa ordem consiste em uma teia de tratados internacionais, acordos de comércio e alianças militares.

Sua face institucional inclui a Organização das Nações Unidas, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio, a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e o G20, entre outras.

Essas entidades, algumas das quais excluíam os países latino-americanos, tinham por compromisso a difusão do Estado de Direito, a democratização, a preservação de mercados abertos e a promoção de pactos de segurança coletiva, prevenindo a eclosão de guerras catastróficas e reprimindo o nacionalismo econômico que as inspira.

A ordem liberal internacional endossou a ideia de um jogo de soma positiva, e não o de soma zero (no qual um perde o que o outro ganha) que prevaleceu por séculos. Ainda que tenha seus críticos, especialmente nos Estados Unidos e na América Latina, ela se provou em geral bastante bem-sucedida.

DESCONFIANÇAS

Da década de 1950 à de 1980, os governos latino-americanos colaboraram relutantemente com essa ordem. Eles se ressentiam de sua estrutura centrada nos Estados Unidos, mas a toleravam desde que as regras não interferissem diretamente na soberania nacional.

Essa atitude era de esperar em uma região pouco engajada nas disputas mundiais de poder e que sempre pensou o desenvolvimento econômico em termos domésticos.

Muitos governos latino-americanos tinham como preocupação central resistir à intrusão das antigas potências coloniais e, mais tarde, dos EUA. Embora a maioria dos países da América Latina (com algumas exceções) tenha se alinhado ao Ocidente durante a Guerra Fria e iniciado processos de democratização, eles jamais adotaram a ordem liberal internacional propriamente dita.

A partir dos anos 80, o comprometimento latino-americano perdeu ainda mais força, apesar do colapso da União Soviética (1989). A maioria dos países da região encarava com desconfiança as terapias de choque (muitas vezes mal implementadas) impostas pelo Consenso de Washington —uma mistura de estabilização macroeconômica, liberalização e medidas de privatização.

No entanto, foi o crescimento espetacular da Ásia, especialmente da China, que afastou dos EUA e da Europa o centro de gravidade. Com a exceção de Cuba e de alguns países bolivarianos, que montaram uma campanha agressiva contra os norte-americanos, a maioria das nações latino-americanas passou a adotar atitude de maior autonomia em relação à ordem liberal internacional.

As nações latino-americanas começaram a construir alianças regionais em ritmo frenético para promover seus interesses, incluindo o Mercosul e a Aliança do Pacifico.

A despeito desses progressos moderados, a região se mantém precariamente integrada, incapaz de sustentar crescimento rápido e tida como pouco confiável.

Não surpreende, portanto, que, de modo geral, a América Latina tenha relevância limitada no cenário mundial.

O Brasil, em particular, alterna apoio e críticas à ordem liberal internacional. Por mais de meio século, o Itamaraty reclamou —e não sem alguma justificativa— de o país estar excluído dos mais altos círculos das instituições internacionais, especialmente o Conselho de Segurança da ONU. Ainda que o país tenha resistido à influência dos Estados Unidos, sempre seguiu as regras do jogo multilateral.

A partir da presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), contudo, o Itamaraty e sua estratégia tradicional foram deixados de lado. As posições brasileiras de política externa se tornaram cada vez mais terceiro-mundistas, ilustradas pelo entusiasmo com os Brics e pelos frequentes contatos com o cubano Fidel Castro (1926-2016), o venezuelano Hugo Chávez (1954-2013), o líbio Muammar Gaddafi (1942-2011) e o iraniano Mahmoud Ahmadinejad.

Enquanto o Brasil advogava maior cooperação entre as nações em desenvolvimento, a expansão acelerada dos negócios privados e públicos brasileiros em regimes antiliberais causou preocupações quanto ao compromisso do país com a ordem liberal internacional.

A falta de credibilidade do Brasil se agravou por causa do péssimo desempenho da economia durante a presidência de Dilma Rousseff (2011-2016). Depois de registrar taxas positivas de crescimento nos anos FHC (1995-2002) e Lula, a economia brasileira desabou sob o peso da chamada Nova Matriz Econômica de Dilma, uma colcha de retalhos de políticas intervencionistas e protecionistas recicladas, que se mostraram um campo fértil para a crescente corrupção.

A isso se somou uma perda da disciplina fiscal instaurada no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e mantida no primeiro mandato de Lula. O resultado foi um colapso do crescimento, que no período foi três pontos percentuais por ano inferior à média regional latino-americana.

FUTURO DO BRASIL

Mesmo assim, as instituições democráticas que o Brasil batalhou muito para construir demonstraram considerável resiliência. Apesar dos danos causados pelas crises econômica, política e moral, o país se beneficiou da existência de imprensa livre e investigativa, bem como do trabalho do Ministério Público, da Polícia Federal e do Judiciário.

Essa feliz confluência de forças criou condições para que se retomasse uma agenda de reformas e práticas econômicas mais centristas, que por sua vez propiciaram os primeiros sinais de que a recessão ficara para trás.

Mais forte e estável, o Brasil poderá se engajar de forma mais eficaz na reformulação de uma nova e mais progressista ordem liberal internacional. Seu eventual papel nesse processo não deve ser minimizado, pois o país tem mais em comum com a ordem liberal do que outras potências emergentes como China, Rússia ou Turquia.

Um fator positivo adicional parece ser uma atitude menos paroquial e mais globalizante de sua elite, que pouco a pouco percebe que o modelo autárquico e intervencionista não funcionou.

Além disso, e não menos importante, a sociedade civil vem se mobilizando para reverter sua profunda e histórica negligência quanto a um ensino público de alta qualidade como fundação para o desenvolvimento econômico e político.

A classe média crescente, de sua parte, demonstra frustração cada vez maior com o alto custo de vida e a qualidade medíocre dos serviços públicos. Esse segmento se indignou ao ver o Estado capturado por interesses empresariais e partidários —alimentados por um imenso esquema de corrupção— e incapaz de entregar um processo de convergência para os padrões de vida dos países avançados.

Nesse contexto, o ano eleitoral oferece potencial verdadeiro de mudança. Uma condição necessária é que o presidente que venha a ser eleito promova uma agenda ampla, profunda e progressista de reformas. Os desafios que terá de enfrentar são enormes, e não há garantia de que um retorno ao populismo possa ser evitado. Resta apenas a esperança de que o eleitorado brasileiro enfim desperte e rejeite as falsas promessas do passado.

Para o bem ou para o mal, o Brasil e a América Latina estão fundamentalmente conectados à ordem liberal internacional. Embora a consolidação das instituições políticas e econômicas liberais seja errática na região, a empreitada continua válida. O retorno do planeta à desordem que existia antes dos anos 1940 pode ser catastrófico, inclusive para essa região. O surgimento de um consenso de Pequim, alicerçado apenas em bases econômicas, seria igualmente ruinoso.

O Brasil tem diante de si a imensa oportunidade de reformular sua política e economia e, no processo, se reposicionar para participar do esforço de construção de uma nova ordem liberal internacional, mais inclusiva e plural. A questão é se os brasileiros estão preparados para aproveitá-la.


Armínio Fraga, 60, é sócio da Gávea Investimentos. Foi presidente do Banco Central do Brasil (1999-2002).

Robert Muggah, 43, é cofundador e diretor de pesquisa do Instituto Igarapé e sócio-diretor do SecDev Group.

Este artigo integra uma série sobre o futuro da ordem liberal internacional organizada pela Phil Lind Initiative e pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá).

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