Crime organizado recruta talentos da informática e se adapta à era digital

Máfias se tornaram capazes de atos ilícitos graves sem recorrer à violência, escreve Misha Glenny

Misha Glenny

RESUMO A internet exerceu impacto considerável sobre o crime organizado, com o advento de hackers e programadores que substituíram a violência por técnicas sofisticadas de computação em seus atos ilícitos. Setores mais tradicionais, como a máfia, também aderem à tecnologia, o que dificulta a atuação das polícias.

 

Quando eu estava na universidade, caso você quisesse comprar drogas, primeiro vinha uma série de telefonemas e conversas crípticas com amigos, depois era preciso enfrentar o labirinto das vielas escuras, com personagens dúbios parados em atitude suspeita a cada esquina, enquanto vendedor e comprador ficavam de olho nos carros de polícia em patrulha e nas pessoas que parecessem ser policiais infiltrados.

Hoje em dia, tudo tornou-se muito mais fácil. Os estudantes e universitários compram suas drogas online e elas chegam pelo correio ou trazidas por mensageiros de bicicleta. As resenhas sobre fornecedores de drogas postadas em sites da dark web [internet oculta, que só pode ser acessada com navegadores especiais] levaram a uma redução do preço e a um aumento da pureza de drogas como a cocaína. É uma operação eficiente e quase sempre sem estresse.

mãos digitando em computador
Repressão a ciberataques desafiam polícia de todo o mundo. - Reuters

O crime organizado passou por tantas mudanças nos últimos 30 anos, em termos qualitativos e quantitativos, que autoridades e políticos enfrentam extrema dificuldade para acompanhar seu desenvolvimento. Sites de venda de drogas na dark web são apenas uma dentre as muitas maneiras pelas quais a cultura digital exerce impacto significativo nesse universo ilícito.

É interessante que levou mais tempo para que seus efeitos desordenadores fossem sentidos nos negócios da máfia do que em outros setores. Por muito tempo, grupos tradicionais de mafiosos e criminosos cibernéticos tinham pouco a ver uns com os outros. Isso está agora mudando e as duas culturas criminais estão se fundindo.

Durante sua evolução, fenômenos discretos como esse vêm buscando interagir e se apropriar dos mecanismos do capitalismo mundial, assim como dos pontos fracos tanto da democracia progressista quanto dos governos autocráticos.

Redes criminais globais começaram a se expandir quase duas décadas antes de o crime cibernético se tornar assunto sério. Dois acontecimentos foram cruciais para promover o crescimento de centenas de percursos criminosos transnacionais em uma rede opaca que abarca o mundo todo: primeiro, a desregulamentação dos controles sobre movimentação de capital na esfera anglo-americana nos anos 1980; segundo, o surgimento de uma temporária —mas vasta— zona sem lei entre 1989 e 1991, depois do colapso do comunismo.

Esta se estendia da fronteira entre Rússia e China, no leste, àquela entre Iugoslávia e Áustria, no oeste. Pela primeira vez na história, todos os países do planeta, mesmo os isolados, como a Coreia do Norte, foram atraídos aos fluxos mundiais de bens e serviços ilícitos.

Então, na virada do milênio, outro nexo de redes começou a emergir. O crime cibernético surgiu de forma modesta nos anos 1990, com os chamados “script kiddies”, jovens hackers que interferiam em sites ou apagavam dados de computadores pessoais por diversão. 

Em pouco tempo, alguns deles se tornaram protocriminosos, estabelecendo sites nos quais os habitantes desse submundo virtual embrionário podiam trocar vastos volumes de dados roubados sobre cartões de crédito e débito.

DELITOS VIRTUAIS

Nos últimos cinco anos, os delitos virtuais assumiram proporções industriais: hackers, programadores e engenheiros trabalham em período comercial e usam técnicas sofisticadas para encontrar alvos. 

A ação mais espetacular desse tipo até o momento levou o Banco Central de Bangladesh a perder US$ 81 milhões —em uma operação de hackers norte-coreanos, de acordo com pesquisadores. Filmes a respeito de grandes tramas criminosas, como “Onze Homens e um Segredo” (2001), em breve se tornarão referência antiquada.

As duas culturas criminais, a tradicional e a digital, desenvolveram-se em paralelo. Os administradores e os soldados dos cartéis de drogas e das quadrilhas de tráfico de pessoas jamais estiveram associados à fraude maciça com cartões de crédito ou ao roubo sistemático de identidade. 

Há um motivo simples para que os dois mundos tenham se mantido distantes. O cerne das máfias tradicionais é a proteção de mercados. Às vezes, ele são lícitos, como restaurantes, atacados por organizações extorsivas; mais frequentemente são mercados ilícitos, como o de drogas. Mas para proteger mercados, seja de seus competidores ou da polícia, você precisa ser capaz de fazer uma coisa: empregar a violência de modo decisivo. Sem isso, você não passa da porta de entrada.

O crime cibernético foi um desenvolvimento revolucionário: pela primeira vez, indivíduos e gangues foram capazes de usar um instrumento para cometer crimes graves —com consequências pessoais e financeiras devastadoras para as vítimas— sem necessidade de recorrer à violência. Você pode planejar um ataque no Cazaquistão contra um alvo em Los Angeles e receber o prêmio em Dubai. Você não precisa de um taco de beisebol virtual para manter concorrentes ou policiais fora do caminho.

As implicações disso são profundas. Acima de tudo, pessoas envolvidas em crime cibernético têm pouco em comum com seus pares do crime organizado tradicional. Há pouca necessidade de capangas brutamontes ou matadores de aluguel. 

Criminosos cibernéticos desenvolvem seus talentos ainda muito jovens, geralmente entre 12 e 15 anos; eles vêm de todas as classes sociais, países e etnias; e geralmente conseguem atingir um nível de educação muito superior ao dos membros das máfias. O único ponto em comum é o gênero: segundo o Hackers Profiling Project, da ONU, 96% dos criminosos cibernéticos são homens, proporção comparável com à maioria das redes de crime organizado.

Quando os delitos cibernéticos se expandiram, nos primeiros anos deste século, os chefes do crime organizado tradicional os encarava com desdém. Recka, um hacker sueco que entrevistei, vem de uma família criminosa tradicional em Malmö. Ele havia se envolvido com “carding”, o comércio de cartões de crédito roubados, e tentou persuadir seu pai e os demais membros da quadrilha a criarem uma divisão de crime cibernético, ao lado das operações de extorsão e drogas. A liderança descartou o jovem, argumentando que essas novas invenções não eram dignas de uma quadrilha bem estabelecida.

Mas os chefes que chegam agora ao comando das gangues são diferentes: eles cresceram na era digital e compreendem muito melhor as vantagens que o ambiente cibernético pode oferecer. Em março do ano passado, a Europol, agência que coordena as operações das polícias europeias, revelou que hoje se dedica prioritariamente a compreender e combater a digitalização do crime organizado.

Essa tendência foi percebida inicialmente em 2013, quando agentes belgas detiveram traficantes de drogas que haviam recrutado dois hackers para invadir o sistema de computadores de um porto. Isso permitiu que a quadrilha rastreasse todos os contêineres que entravam e saíam do local e roubasse aqueles que sabia estarem carregados de cocaína.

NOVAS TÁTICAS

Hoje, quadrilhas especializadas em furtos residenciais vasculham toda uma rua de potenciais alvos por meio de drones. Monitoram as idas e vindas dos moradores usando vídeos e contas de mídia social e planejam o momento da ação de acordo com esses dados. Não vai demorar muito para que descubram como perguntar à [assistente digital] Alexa  o código do alarme contra roubo.

A polícia vem detectando esse tipo de prática em todos os setores do crime: no tráfico de pessoas, em que refugiados recebem cartões SIM para auxiliar sua passagem pelas fronteiras; na ascensão do bitcoin e outras criptomoedas para comerciar bens ilícitos; no uso onipresente de serviços de mensagens criptografadas para o comércio de espécies selvagens ameaçadas; e, sobretudo, na distribuição de drogas recreativas e farmacêuticas.

No médio prazo, duas questões de política pública e uma de policiamento determinarão se os fluxos de atividade criminosa em larga escala poderão ser estancados. Primeiro, jurisdições tributárias offshore deveriam ser forçadas, em todos os casos, a tornar público o beneficiário de qualquer companhia de fachada constituída em seus territórios. 

Os governos têm relutado em dar esse passo porque muitas megacorporações lícitas e influentes utilizam esses paraísos fiscais para evitar ou sonegar impostos. Mas para as organizações criminosas, esses lugares são parte essencial de suas operações de lavagem de dinheiro.

Além disso, os países deveriam apoiar investigações acerca de grandes escândalos de corrupção, como o que vem chacoalhando a base do Brasil nos últimos anos. O relacionamento entre políticos corruptos, crime organizado e empresas lícitas buscando se envolver em atividades ilícitas é o mecanismo central que conduz à desastrosa desigualdade tão bem descrita por Thomas Piketty em seu livro “O Capital no Século 21” (Intrínseca).

De modo geral, as agências de policiamento estão trabalhando com afinco para acompanhar o impacto da internet sobre o crime organizado. Mas, da mesma forma que há escassez de engenheiros de segurança cibernética competentes ao redor do mundo, a polícia também tem dificuldade de atrair funcionários com as habilidades necessárias para combater organizações de crime cibernético —que frequentemente desfrutam de apoio, tácito ou ativo, dos aparatos de segurança estatais.

O crime é um parasita curioso. Ele precisa sugar o sangue de seu hospedeiro para enfraquecê-lo, mas não a ponto de matá-lo. Os lucros de crime e corrupção estão crescendo e a cobiça que geram é difícil de conter. Em uma era de austeridade, em que hackers estão cada vez mais próximos de paralisar partes da infraestrutura crucial de um país, o mundo precisa desenvolver uma estratégia adequada para enfrentar esse problema.


Misha Glenny, 59, jornalista britânico, é autor de "McMáfia" e "O Dono do Morro" (Companhia das Letras).

tradução de Paulo Migliacci

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