Leia trecho de 'Kyra Kyralina', do romeno conhecido como 'Górki dos Bálcãs'

Obra de Panaït Istrati, editada em 1924, será lançada pela editora Carambaia em março

Panaït Istrati tradução Erika Nogueira

SOBRE O TEXTO O trecho nesta página integra "Kyra Kyralina", obra do escritor romeno editada em 1924, que a Carambaia lança em março. Com prefácio do francês Romain Rolland (Nobel de Literatura), o livro é o primeiro volume da saga "Narrativas de Adrien Zograffi", que rendeu ao autor o apelido de "Górki dos Bálcãs".

 
pintura
Ilustração feita para a 'Ilustríssima' - Paulo von Poser

No pequeno bosque onde a carroça dos três feirantes parou para o almoço, Stavro fazia ouvidos moucos para os dois companheiros que havia uma hora lhe pediam a história de sua infância e a da irmã, que ele mencionara no início do relato no celeiro. Não era falta de vontade de contar –porque seu estado de espírito estava predisposto agora àquela evocação distante–, mas é sempre assim quando desejamos tocar nas eclusas enferrujadas que barram a passagem das águas do passado: é bom fazer-se um pouco de rogado.

Estendidos no musgo macio do pequeno bosque, já estavam fumando enquanto o cavalo pastava e bufava dando passos curtos em torno deles. Stavro levantou-se, foi recolher galhos secos e acendeu uma fogueira; e, quando a brasa estava pronta, procurou na carroça os utensílios para preparar café, ferveu água e colocou no ibrik [espécie de jarra] de cobre o açúcar e o café necessários. Depois, com um talento de cafédgi [especialista em fazer café], verteu o líquido espumante e aromático nas três xícaras sem pires, chamadas felidganes [pequenas xícaras]; serviu, sentou-se com as pernas cruzadas à turca e começou:

- Não me lembro da data nem da idade exata que eu tinha naquela época. Mas sei que o acontecimento que se seguiu de imediato ao drama foi a Guerra da Crimeia.

Quando era bem pequeno, lembro-me da dureza de um pai que batia em minha mãe todos os dias, sem que eu entendesse por quê. Minha mãe se ausentava com frequência da casa, retornava e apanhava antes de sair e depois de voltar. Eu não sabia se a maltratava na ida para fazê-la ir embora ou se para impedi-la de ir, nem se, na volta, era por causa da ausência ou para ela não retornar mais.

Lembro-me ainda de que, naquela época confusa, ao lado do pai sempre ficava meu irmão mais velho, tão duro quanto ele, enquanto ao lado da mãe se lamentava minha irmã Kyra, quatro anos mais velha que eu e pela qual me sentia atraído.

Pouco a pouco a névoa se dispersa, eu cresço e começo a entender. E entendo coisas curiosas... Eu devia ter entre 8 e 9 anos, minha irmã entre 12 e 13: ela era tão bela que eu ficava o dia inteiro ao seu lado para admirá-la da cabeça aos pés. Ela se embelezava desde a manhã até a noite, e minha mãe fazia o mesmo, porque era tão bela quanto a filha. Com uma caixa de ébano, diante do espelho as duas maquiavam os olhos com kinorosse [fuligem fina] embebido em óleo, as sobrancelhas com a ponta carbonizada de um galho de manjericão, enquanto os lábios e as maçãs do rosto eram coloridos com vermelho de kîrmîz [pintura vermelha], tal como as unhas. E, terminada aquela longa operação, elas trocavam beijos e palavras carinhosas e se punham a fazer minha toalete. Depois nós três, de mãos dadas, dançávamos à turca ou à grega e nos beijávamos. Desse modo, formávamos uma família à parte.

Agora o pai e o primogênito já não vinham todas as noites para casa. Eram fabricantes de carroças, os mais habilidosos e procurados da região, e a oficina ficava do outro lado da cidade, no bairro chamado Karakioi, ao passo que nós morávamos em Tchetatzue. Entre nós e eles se estendia toda a cidade. A casa de Karakioi pertencia a meu pai. Lá ele mantinha dois aprendizes, que alimentava e abrigava, assim como uma velha doméstica que cuidava da casa. Eram sete pessoas. Nós nunca íamos lá, e eu mal conhecia a oficina de meu pai, que me dava medo. Em Tchetatzue, estávamos na casa de minha mãe, não fazíamos absolutamente nada o dia inteiro, nos divertíamos... No inverno, tomávamos chá; no verão, refrescos; durante o ano todo comíamos cadaifs, serailés [biscoitos turcos] tomávamos café, fumávamos narguilé, nos maquiávamos e dançávamos... Era uma vida boa...

Sim, era uma vida boa, exceto nos dias em que o pai ou seu filho ou os dois juntos irrompiam no meio da festa e espancavam a mãe, esmurravam Kyra e quebravam a bengala na minha cabeça, porque agora eu também fazia parte da dança. Como normalmente falávamos turco, eles chamavam as duas mulheres de patchauras e a mim, de kitchuk pezevengh [putas e pequeno cafetão]. As duas infelizes se jogavam aos pés dos tiranos, abraçavam-lhes as pernas e imploravam que lhes poupassem o rosto:

– No rosto não! – rogavam elas.

– Em nome do Senhor e da Virgem Santa, não batam na cara! Não toquem nos olhos! Perdão!"¦

Ah! O rosto, os olhos, a beleza daquelas duas mulheres!"¦ Não existia nenhuma que fosse superior à delas! Tinham cabelos de ouro, compridos até as pernas; a tez branca; sobrancelhas, pestanas e pupilas negras como ébano. Porque, no ramo romeno, do lado de minha mãe, houvera uma mescla de três raças diferentes: turca, russa e grega, de acordo com os ocupantes que tinham dominado o país no passado.

Aos 16 anos, minha mãe punha no mundo o primeiro filho; mas, no momento em que abri os olhos, ninguém acreditaria que ela era mãe de três filhos. E aquela mulher, feita para ser acariciada e beijada, apanhava até sangrar. No entanto, se meu pai não esbanjava carícias, os amantes a ressarciam esplendidamente; e eu nunca soube se, no início, foi minha mãe que começou a trair o marido e a se deixar surrar, ou se foi meu pai que começou a maltratar a mulher e a se deixar trair. Em todo caso, a festa nunca acabava lá em nossa casa, porque gritos de prazer se alternavam com gritos de dor; e, assim que a surra terminava, as risadas desatavam nos rostos banhados de lágrimas.

Eu montava guarda, comendo bolos, enquanto os cortejadores –com modos, aliás, decentes– se sentavam à turca no tapete, cantavam e pediam às mulheres que dançassem, tocando para elas canções orientais ao violão acompanhado de castanholas e pandeiro. Minha mãe e Kyra, vestidas de seda e devoradas pelo prazer, executavam a dança do lenço, rodavam, rodopiavam, embriagavam-se. Então, com o rosto inflamado pelo calor, jogavam-se sobre almofadões, escondiam as pernas e os pés debaixo do vestido comprido e se abanavam. Bebiam-se licores finos e queimavam-se ervas aromáticas. Os homens eram jovens e bonitos. Sempre morenos, pretos; vestiam-se com elegância, tinham bigodes pontudos, barba muito bem cuidada; e os cabelos, lisos ou ondulados, exalavam um cheiro forte de óleo de amêndoas com essência de almíscar. Eram turcos, gregos e também, raramente, romenos, porque a nacionalidade não desempenhava papel nenhum, desde que os apaixonados fossem jovens e bonitos, delicados, discretos e não apressados demais.

Minha situação era muito ingrata... A ninguém contei, até agora, o que foi meu suplício então.

Meu dever era vigiar, sentado no parapeito da janela, e evitar qualquer surpresa. Aquilo me agradava bastante, porque eu odiava mortalmente os homens de Karakioi que nos surravam. Mas em meu peito se dava uma luta terrível entre o dever e o ciúme.

Eu tinha ciúme, um ciúme feroz.


Panaït Istrati (1884-1935) foi um escritor romeno.

Erika Nogueira, 31, graduada em letras pela Universidade Mackenzie, é tradutora e editora do selo Biblioteca Azul.

Paulo von Poser, 57, é artista plástico. Sua mostra individual na Verve Galeria vai até 31/3.

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