Leia trecho do romance inédito que venceu o último Man Booker Prize

'Lincoln no Limbo', de George Saunders, será lançado pela Companhia das Letras em março

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George Saunders tradução Jorio Dauster

SOBRE O TEXTO O trecho nesta página integra "Lincoln no Limbo", romance vencedor do Man Booker Prize 2017, que a Companhia das Letras lança em março. Partindo de um acontecimento histórico —a morte, em 1862, do filho de 11 anos de Abraham Lincoln—, o escritor cria uma narrativa fantástica na qual o ex-presidente, em um luto que beira a insanidade, passa as noites na capela do cemitério, com o corpo da criança, cercado de diversos fantasmas que vivem ali no limbo, entre a morte e a reencarnação.

 
soldadinhos de brinquedo
Ilustração da Imaginação - David Magila

No dia em que nos casamos eu tinha quarenta e seis anos e ela dezoito. Ora, bem sei o que você está pensando: homem mais velho (nada magro, começando a ficar calvo, puxando por uma perna, dentadura de madeira) exerce sua prerrogativa matrimonial, humilhando com isso a infeliz jovem...

Mas não é verdade.

Pois fique sabendo que foi exatamente isso que me recusei a fazer.

Na noite do casamento, galguei com passos pesados a escada, o rosto afogueado pela bebida e pelas danças, para encontrá-la vestindo algo quase transparente que a tia a obrigara a usar, a gola de seda vibrando de leve em compasso com seus tremores —e não fui capaz de fazer nada.

Falando baixinho, abri o coração: ela era bonita; eu era velho, feio, gasto; aquela união era estranha, não nascera do amor, mas das conveniências: seu pai era pobre, a mãe doente. Por isso ela estava ali. Eu sabia disso perfeitamente. E não sonharia em tocá-la, eu disse, quando senti seu medo e... usei a palavra "aversão".

Ela me garantiu que não sentia "aversão" embora eu visse seu rosto (belo, corado) contorcido pela mentira.

Propus que fôssemos... amigos. Cuidaríamos de nos comportar para todos os efeitos como se houvéssemos consumado a união. Ela deveria se sentir à vontade e feliz na minha casa, esforçando se para transformá-la em seu próprio lar. Eu não esperaria mais nada dela.

E assim vivemos. Tornamo-nos amigos. Amigos queridos. Isso foi tudo. E, no entanto, era muito. Ríamos juntos, tomávamos decisões sobre a rotina da casa – ela me ajudou a prestar mais atenção nos criados, falar com eles de forma menos superficial. Ela tinha muito bom gosto e conseguiu remodelar os aposentos gastando uma fração do custo estimado. Vê-la alegrar se quando eu chegava, sentir seu corpo junto ao meu quando discutíamos algum problema doméstico me fazia um bem que não sou capaz de explicar de forma adequada. Eu tinha sido feliz, suficientemente feliz, mas agora me via com frequência pronunciando uma prece espontânea em que dizia apenas: Ela está aqui, ainda aqui. Era como se um rio impetuoso houvesse aberto caminho pelo meio de minha casa, agora invadida por um aroma de água fresca e pela percepção de algo exuberante, natural e arrebatador sempre se movendo próximo a mim.

Certa noite ao jantar, por conta própria e diante de um grupo de meus amigos, ela me elogiou – disse que eu era um homem bom, sensível, inteligente, carinhoso.

Quando nossos olhares se encontraram, vi que ela havia falado com toda a franqueza.

No dia seguinte, deixou um bilhete em cima de minha escrivaninha.

Conquanto sua timidez a impedisse de expressar aquele sentimento com palavras ou gestos, segundo o bilhete minha bondade para com ela tinha tido um efeito muito desejável: ela estava feliz, na verdade se sentia bem em nossa casa, e desejava, assim escreveu, "alargar as fronteiras de nossa felicidade em comum daquela forma íntima que ainda desconheço". Pedia que a guiasse naquilo como o havia feito "em tantos outros aspectos da vida adulta".

Li o bilhete, fui cear —e a encontrei iluminada. Trocamos olhares francos ali mesmo, diante dos criados, embevecidos com o que de algum modo tínhamos conquistado para nós dois com base em condições tão pouco promissoras.

Naquela noite, em sua cama, cuidei de me comportar como sempre: gentil, respeitoso, solícito. Fizemos pouca coisa —nos beijamos, nos abraçamos—, mas imagine, se quiser, o esplendor dessa repentina condescendência. Ambos sentimos o despertar do desejo sexual (sim, claro), porém calcado na sólida afeição que havíamos construído aos poucos: um vínculo confiável, duradouro e genuíno. Eu não era um homem inexperiente —tinha sido mulherengo quando jovem; passara tempo suficiente (envergonha me confessar) em lugares de má reputação; fora casado antes, mantendo felizmente uma relação saudável—, mas a intensidade daquele sentimento era de todo nova para mim.

O entendimento tácito era o de que, na noite seguinte, iríamos explorar mais a fundo aquele "novo continente", e de manhã fui a meu escritório na tipografia lutando contra a força gravitacional que me impelia a ficar em casa.

E aquele dia, infelizmente, foi o dia da viga.

Sim, sim, que sorte!

Uma viga caiu do teto e me atingiu bem aqui, sentado à escrivaninha.

Por isso nosso plano precisou ser adiado enquanto eu me recuperava. Segundo o conselho de meu médico, fui posto..

Uma espécie de caixa de doente foi considerada... digamos...

hans vollman

Eficiente.

roger bevins iii

Isso mesmo, eficiente. Obrigado, amigo.

hans vollman

De nada. É um prazer.

roger bevins iii

E lá fiquei, na caixa de doente, me sentindo um idiota, em plena sala de visitas, no preciso lugar onde recentemente havíamos passado (alegres, com certo sentimento de culpa, de mãos dadas) a caminho do quarto dela. Depois o médico voltou e seus assistentes carregaram a caixa de doente para a carruagem que transportava aquelas caixas, e compreendi que nosso plano teria de ser postergado indefinidamente. Que frustração! Quando, agora, eu conheceria os prazeres plenos do leito matrimonial? Quando contemplaria seu corpo nu? Quando ela se voltaria para mim em certo estado, a boca faminta, as faces coradas? Quando seus cabelos, soltos num gesto impetuoso, por fim cairiam à nossa volta?

Bom, pelo jeito teríamos de esperar até que eu me recuperasse totalmente.

De fato algo bem desagradável.

hans vollman


George Saunders, 59, ganhador do Man Booker Prize em 2017, é autor de "Dez de Dezembro" (Companhia das Letras).

Jorio Dauster, 80, é tradutor, diplomata e consultor de empresas. Foi presidente da Vale (1999-2001).

David Magila, 38, é artista plástico.

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