Autora elogiada por livros infantis estreia na ficção voltada a adultos; leia

Luana Chnaiderman publica neste mês o livro de contos "Os Animais Domésticos e Outras Receitas"

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Luana Chnaiderman

SOBRE O TEXTO Os textos abaixo integram "Os Animais Domésticos e Outras Receitas", que a Editora Perspectiva publica neste mês. A autora, elogiada por suas obras de literatura infantil, tem nesse livro de contos seu primeiro trabalho direcionado ao público adulto.

 

desenho geométrico em vermelho
Ilustração em "sanfoninha" para contracapa da Ilustríssima - Alice Shintani

​​Pensar em dizer adeus

E vamos supor que combinassem de dar o que para cada um houvesse de mais valioso, de mais valioso no mundo, o que cada um tivesse daria ao outro, em presente de aniversário, em celebração ao encontro, o que houver de meu de mais valioso eu lhe dou, e seu, o que houver de mais rico e precioso, aquilo seu que valer mais, você me dá.

Não podia ser comprado. Algo que cada um tivesse, de mais valioso.

E vamos supor que ela desse um conto de seis linhas de um mestre chinês do século V sem fim nem começo. E ele desse o relógio que era dele. Titânio italiano edição Fórmula 1. E ele não gostava de ler. E ela não usava relógios.

Vamos supor que fosse o primeiro aniversário dos dois. E eles reservaram uma mesa no restaurante. E ele comprou sapatos novos. E ela perfumou-se, mas não muito. Ele ficou preocupado onde ia estacionar naquele restaurante no centro. Ela comprou uma combinação de calcinha e sutiã para transar. Vamos supor que a calcinha fosse transparente.

Ele vestiu a camisa azul. E a corrente de ouro. Ela vestiu a minissaia e a blusa de seda, a sandália de prata.

Eles se deram os presentes. O que houvesse de mais valioso. E vamos supor que depois foram para um hotel e fizeram amor. Ela usou somente o relógio novo. Ele, depois, leu em voz alta o conto chinês. Até a quarta linha. Porque na quinta, já dormiam os dois.

E vamos supor que combinassem de dar o que para cada um houvesse de mais valioso, de mais valioso no mundo. O que cada um tivesse, daria ao outro, em presente de aniversário, celebração, encontro. Vamos supor que eles combinaram assim:

O que houver de meu, de mais valioso, eu lhe dou. O que houver de seu, de mais rico e precioso, você me dá.

Eles reservaram uma mesa no restaurante. Ele comprou sapatos novos. Ela passou perfume. Ele ficou preocupado onde estacionar. Ela comprou uma combinação de calcinha e sutiã. Vamos supor que a calcinha fosse transparente.

Ele vestiu a camisa azul. Pôs a corrente de ouro. Ela vestiu a minissaia, a blusa de seda.

Eles se deram os presentes. O que havia de mais valioso:

Ela deu uma faca tradicional japonesa, a lâmina feita de aço mais duro que o ocidental, porém mais frágil, foi o pai que explicou. Aquela era uma faca samurai honyaki, a lâmina em forma de salgueiro, bocho santoku, ou a faca das três virtudes. Uma faca multifacetada, para peixes, carnes e legumes. Junto à faca, a pedra de amolar. Você molha com água, ela explicou, e passeia a faca por cima, vai e vem.

Vamos supor que ele desse o espelho que era dele. Um espelho que havia sido da avó, trazido no navio, bisotê e prata. Não havia irmãs, nem irmão. O espelho era a maior lembrança. Nele, a imagem de três mulheres: minha mãe, minha avó e agora a sua. Minha mãe me deu e falou: o espírito se olha no espelho.

Você passeia a faca por cima, com cuidado, para que não machuque o fio. O espelho bisotê, não se faz mais nele a imagem guardada de três mulheres: a mãe, a avó e agora a sua. Peixes, aves, carnes, três gerações e o oceano.

Vamos supor que a faca não coubesse no bolso, deixa que eu levo. O espelho não cabia na bolsa, deixa que eu levo. O carro está na porta.

Vamos supor que na saída do restaurante houvesse um fio de água. E ela tinha comprado a sandália de prata, o fio de salto.

Desequilibrou, o espelho a faca.

Sentiram o quebrado.

Vamos supor então que os dois não pudessem mais se falar, mas ela falou: foi o salto da sandália. Um fio de voz. A sua sandália veio no navio de antigamente? Havia nela três gerações? Era sandália bisotê? E o espelho? Cortava carnes e legumes? Cortava as aves? Foi seu pai quem deu?

Seguiram o roteiro da noite.

Ficaram sete anos juntos. A faca sem fio. O espelho quebrado.

 

Desmanche

Reúnem-se ao entardecer. Omoplatas, nadadeiras, clavículas, brânquias, escamas, pele. Chegada a primeira estrela, preparam o canto cova, fazedor de viúvas, órfãos e mães sem filhos.

No encontro da pedra com a água, cozem o destempero. Sempre-noivas, lindas e nuas, sem pés nem vestígios nas ondas-grinaldas, desafiam a vida. Matracam matracam matracam e comemoram danadas a montagem da armadilha, notas e homens enlaçados em teias de areia sonoras. Desconhecem fala pequena, brisa, murmúrio, farfalhar de água mansa. Cantam as águas do mar e estouram as ondas em desmanche arquitetado.

O canto é alvoroço, trombeta e fanfarra, geleia de vozes mulheres peixe. Acenam aos ouvidos e arrebentam os ares. Em meio à zoada, moldam-se sonoras e ensaiam o desvio. Lápide certa de água e sal, fazem dos homens cegos, loucos, forjados, gado amansado, carneiros, frangote embalado.

Nunca ninguém viu tamanha lascívia, sabida e ensaiada. Lapidam os ventos até que se forme corrente favorável, talham e aplainam as ondas, aparelham a ladroagem, maduram o encanto rumo ao trespasse decisivo, à dissolução, ao passamento.

Tiranas cantantes, afinam os trinados-foice como quem brinca de corda. Ali, no embalo do esquecimento, ao lado da lua, aguardam o próximo navio até amanhecer, quando vão dormir, no sono das pedras.


Luana Chnaiderman, 42, escritora e professora, é autora de "Minhocas" (Cosac Naify) e "Fuga" (FTD). 

Alice Shintani, 47, é artista plástica. Venceu o prêmio de Residência SP-Arte em 2017.

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