Descrição de chapéu Memorabilia

Heitor Dhalia conta por que 'Sete Samurais' marcou sua vida

Segundo cineasta, filme de Kurosawa é uma metáfora dos conflitos de que a existência é repleta

Heitor Dhalia

Assisti a "Os Sete Samurais" pela primeira vez quando tinha 20 e poucos anos, na minha casa na praia de Pau Amarelo, litoral norte de Pernambuco. Vi muitos filmes naquela época, alguns do próprio Kurosawa, mas tem uns que marcam mais que outros.

O filme tem toda uma estratégia militar que eu adoro —gosto muito de jogar xadrez—, mas o que mais me fascina é o lado filosófico da coisa. Kurosawa conseguiu fazer um retrato da vida comum daqueles personagens, mostrando, ao mesmo tempo, o que é extraordinário. Ele escolheu um gênero, fez um filme de guerra, mas o eleva a uma tragédia e análise social aguda, mostrando também um rigor estético muito sofisticado.

A profundidade de "Os Sete Samurais" resulta do fato de ele ser uma metáfora da vida, que é repleta de conflitos em todos os níveis. Da luta pela sobrevivência até as relações interpessoais, tudo está em choque.

duelo em preto e branco
Cena de "Os Sete Samurais" (1954), de Akira Kurosawa - Reprodução

O palco é uma aldeia de camponeses, plantadores de arroz, que acabam de terminar a colheita que lhes garantiria a sobrevivência pelo próximo ano. Nesse momento, aparecem bandidos que ameaçam saqueá-los, e a vila decide, então, contratar uma espécie de serviço de proteção de alguns samurais desgarrados. Muitos são mercenários, e só alguns têm a ideologia verdadeira de lutar para defender aquela vila.

Partindo de embates de classe, o filme evolui para um debate sobre a guerra como elemento fundador da natureza humana. A história do homem é a história da guerra, como já se via na "Odisseia" e na "Ilíada", obras seminais da dramaturgia ocidental que partem da Guerra de Troia.

Vem à minha lembrança aquele trecho de "Quincas Borba", de Machado de Assis, que narra a briga de duas tribos pela sobrevivência, simbolizada numa safra de batata, e que termina cunhando a expressão "ao vencedor, as batatas". A guerra é a grande metáfora do mundo. É chocante como estamos constantemente no limiar da barbárie. Tudo que o ser humano conquistou como civilização é muito frágil e pode se romper a qualquer hora.

Veja só o Rio de Janeiro. A vida do trabalhador na Rocinha acontece em meio a uma briga de facções. O Brasil é um país muito brutal, e o Rio é uma cidade conflagrada, a gente está o tempo inteiro exposto à barbárie.

Em "Os Sete Samurais", trava-se aquela batalha enorme, onde muitos morrem e um ou outro sobrevive por acaso. E a vida deles segue na labuta da colheita de arroz. O filme começa na colheita de uma safra e termina no plantio da próxima. É a tradução da tragédia humana: uma luta constante cuja única saída é seguir em frente.

Isso me remete ao final de "Barry Lyndon", que tem aquela frase que Kubrick tira do livro: "Bons ou maus, bonitos ou feios, ricos ou pobres, agora, eles são todos iguais". Ou seja, vivemos uma vida inteira de conflitos —ou cheia de som e fúria como disse Shakespeare— e, ao fim, você acaba voltando ao nada.

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O cineasta Heitor Dhalia - Bruno Poletti/Folhapress

Há um pano de fundo niilista no enredo de "Os Sete Samurais": o tempo como fator de construção e destruição. O filme tem um personagem maravilhoso: um velho que diz que um dia era um jovem lutador e, no dia seguinte, passou a mão na cabeça e viu que seus cabelos já estavam brancos.

Hoje eu tenho cabelos brancos, igual àquele personagem. Mas ver essa cena já fez sentido para mim naquela época em que a vi pela primeira vez. Nós vivemos toda a vida sem entender o que está acontecendo, levados por um turbilhão de acontecimentos, e não nos damos conta disso. E quando notamos, o tempo passou.


Heitor Dhalia, 48, cineasta, dirigiu "O Cheiro do Ralo" e "À Deriva". Seu próximo filme, "Tungstênio", estreia em 10/5.

depoimento a Walter Porto

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