Inhotim corre perigo e precisa ter seu acervo preservado, defende autor

Artigo aponta os riscos da venda de obras para quitar dívidas de Bernardo Paz, idealizador do instituto

Everaldo Gonçalves

RESUMO Autor traça histórico do Instituto Cultural Inhotim e descreve sua especificidade como fruto de uma conjunção de fatores dos reinos vegetal, mineral e animal. Defende a importância de sua manutenção e o risco de dano ao acervo que pode trazer a venda de algumas obras para quitação de dívidas do seu idealizador, Bernardo Paz.

 

Ao caminhar no parque Inhotim, entre uma belíssima variedade de 1.500 palmeiras do mundo todo, é fácil perceber o solo amarelo de alteração do granito. Poucos sabem que, na pedreira abandonada de Brumadinho (MG), foi datada o Gnaisse Alberto Flores, rocha com 2,78 bilhões de anos, a mais antiga do Brasil (a mais antiga do mundo tem 4,4 bilhões de anos e fica na Austrália).

No passeio, a pé ou nos carrinhos elétricos, é possível notar perceber, pelas marcas de onda nas placas de quartzito da calçada, que Minas Gerais já foi fundo de mar. Quem olha para o chão vê o solo vermelho característico da alteração do minério de ferro com o tipo de canga, oolítico, o rolado, o granulado e itabirítico bandado. O Instituto Inhotim está encravado no Quadrilátero Ferrífero.

Ninguém sabe ao certo se a palavra que nomeia o instituto vem do tempo em que os escravos juntavam tim-tim por tim-tim as fagulhas e pepitas do nosso ouro. Talvez decorra da reverência "sim, senhor" —ou, simplesmente, o "nhô"—, que deu no "nhô-sim" e logo "nhotim". Isso se não foi mineirismo: o "negocim" de Vicente —que, em Minas, vira Vicentim e logo Tim—, que, em sendo patrão, merecia o "i-nhô-tim".

Mas se sabe que a sede da fazenda remonta à época da escravatura e da mineração de ouro. Com a nacionalização do subsolo por Getúlio Vargas, as terras (e as minas) foram compradas pela Muller, mineradora de ferro holandesa que usava o recanto bucólico para seus hóspedes.

Na década de 1980, já nas mãos do empresário Bernardo Paz, o local passou a ser usado para lazer do dono, onde ele reuniu impressionante coleção de arte. Foi só nos últimos anos que o espaço em Brumadinho se tornou sinônimo de museu importante de arte contemporânea a céu aberto.

O que pouco se comenta é que o parque, no fundo, é obra dos reinos vegetal, mineral e animal —este último na figura do homem, com suas mãos, sua mente e seu bolso.

A mineração, como se sabe, é atividade predatória por natureza. Mas há no instituto um ciclo que mostra como é possível dar à sociedade algum retorno desse tipo de extrativismo.

O minério de ferro extraído na região do Inhotim, exportado para alimentar as siderúrgicas mundo afora desde a primeira Revolução Industrial, no século 18, voltou como aço ou sucata.

Essa dialética do retorno do ferro à natureza está resumida em "Beam Drop Inhotim" [queda de viga Inhotim], obra do americano Chris Burden inspirada em trabalho feito em 1984, em Nova York.

vigas de concreto
Instalação "Beam Drop Inhotim", de Chris Burden - Eduardo Eckenfels/Divulgação

No conceito original, havia uma associação com os movimentos da arte do corpo, mas tenho para mim que, em sua nova versão, em Inhotim, ela ganhou mais vigor por apontar para o eterno retorno da natureza.

Vergalhões de aço são descartados em todo o mundo, sem que se saiba seu destino. Para a obra de Burden, 71 vigas de aço de perfil disforme foram recuperadas em ferros-velhos de Belo Horizonte e trazidos para o Inhotim. Uma a uma, foram içadas por um guindaste e lançadas numa cava retangular cheia de cimento, que endureceu deixando as peças espetadas à vista, como um porco espinho.

Pode-se imaginar que, daqui a milhares de anos, a obra vai mostrar, pela ação corrosiva, o aço enferrujado voltar ao pó de ferro que, por sua vez, vai se misturar ao solo de Inhotim.

SOM DA TERRA

Num outro ponto do parque, há um poço tubular de 250 metros de profundidade e 12 polegadas de diâmetro. Dentro dele, geofones captam e ampliam os ruídos do solo, sob camadas de rochas perfuradas. O visitante pode ouvir o som da terra, separadamente do som do ser humano —é uma pena que não se veja o perfil das rochas do poço, mas obra de arte não é ciência.

Inhotim é um conjunto de obras de arte que exploram a relação humana com o ambiente presente. O pavilhão monumental da fotógrafa Claudia Andujar —ativista suíça, naturalizada brasileira, que viveu entre os índios ianomâmi—, com 1.683 m² de área construída num plano único na meia encosta, tem um muro de arrimo em pedras e serve de observatório do parque.

O edifício foi levantado pela mão de pessoas comuns que, tijolo a tijolo, colocaram as paredes no prumo e no alinhamento que, à vista de quem olha, não vê defeito algum de assentamento no multicolorido vermelho-cinza, na espessura da massa na junta, na simetria do meio-tijolo, na perfeição da quina da parede, da meia parede e da parede e meia. O tijolo requeimado é de olaria, sem a telha da cobertura, como aquelas do tipo colonial feitas nas coxas dos escravos.

O professor Sérgio Ferro (1938), ao dissertar sobre o "Canteiro e o Desenho" (1979), valoriza exatamente esse tipo de obra, na qual o operário dá um pouco de sua vida ao incorporar seu trabalho na casa que faz como se fosse sua.

 

Dentro do pavilhão, cada imagem colhida nas campanhas de Claudia na Amazônia dá vida ao silvícola, mostrando o ritual da tribo se evanescendo, confundindo-se com o índio morto posto a nu com a nudez externa do pavilhão.

Qual o significado? Cada um, principalmente em se tratando de arte contemporânea, enxerga ou escuta interpretando a seu modo. E o valor da obra?

O Instituto Cultural Inhotim —uma sociedade civil de interesse público, com curador, diretoria e apoio de pessoas jurídicas que controlam verbas de patrocínio próprio e também de incentivos captados via Lei Rouanet— nasceu do sonho de Bernardo Paz.

O empresário —um tipo místico, avesso a badalações, que faz defesa da cultura adquirida na vida em detrimento da educação formal da escola— ficaria célebre por trocar sua rica coleção de arte moderna por arte contemporânea.

"A arte moderna não ensinou nada a ninguém. Eu comprava obras de arte moderna. Hoje, tenho pavor", disse em 2012.

Ele pôs sua coleção particular de arte contemporânea no acervo inicial do museu. Passou também a usar os proventos da mineradora na incorporação de novas obras de artistas contemporâneos, feitas especificamente para Inhotim.

O instituto recebeu do patrono a área da fazenda, com 140 hectares de mata nativa e secundária, num encrave de cerrado com campo rupestre que só medra nas cangas ferríferas, e ainda um jardim inspirado em meu amigo Roberto Burle Marx (1909-1994), que certa vez me disse: "Ninguém deveria morrer antes de ver o Inhotim".

Recentemente, revelou-se que o criador do Inhotim não pagou tributos declarados e, para honrar as dívidas do Grupo Itaminas, se dispôs a entregar suas peças expostas no instituto.

NÚMEROS

Aberto ao público em 2007, com visitação inicial de 7.000 pessoas, o Inhotim tem recebido cerca de 350 mil visitantes por ano —15% dos quais são estrangeiros, o que pode viabilizar a implantação do aeroporto internacional de Betim—, com picos diários de 12 mil pessoas. Nos últimos dez anos, somaram-se 2,4 milhões de visitantes, mas a renda de público ainda não é suficiente para manter o parque.

Inhotim emprega 500 funcionários, quase todos da região, que administram um restaurante de luxo, lanchonetes, sanitários, vários prédios de galerias de autores nacionais e internacionais, além de eventos culturais.

A consagração de Inhotim coincidiu com a recente crise do minério de ferro. O mercado, estável durante um século e meio nas mãos dos americanos, enfrenta problemas devido à política irresponsável de uma China que, sozinha, está levando o Brasil aos pedaços e assumindo setores de segurança nacional. Manipula o preço do minério diariamente: ora baixa por causa de estoque, mas logo aumenta pela retomada da construção civil.

Mineração é projeto de longo prazo, e a política mineral brasileira tem sido lastimável.

Inhotim sofreu direta e indiretamente com a crise do minério: a fonte inesgotável de recursos de seu mecenas corre perigo e a instituição ainda não consegue se manter com as receitas dos ingressos, dos apoiadores e dos amigos.

Bernardo Paz sugere a venda de suas peças de arte para quitar dívidas. Mas qual o preço desse acervo? Não se pode usar a lei da oferta e da procura como parâmetro, mas sim o valor intangível de cada um dos trabalhos para não desfalcar a obra coletiva que é o Inhotim.

Ainda que se possa estimar as horas e horas de trabalho útil, perdido ou morto, o valor da obra de arte não é proporcional ao trabalho embutido na mercadoria mais seus custos de produção.

Tal qual o valor do minério, uma riqueza natural pronta, mas cuja valoração envolve a acumulação primitiva do capital, a tal da mais-valia, o excedente não pago, seja ao trabalhador, seja à nação.

Ninguém sabe calcular qual o valor do minério, assim como o da obra de arte —e muito menos de um acervo coletivo como Inhotim.


Everaldo Gonçalves, 74, é geólogo e amigo do Instituto Cultural Inhotim. Foi professor da USP e da UFMG, diretor da Eletropaulo e presidente da CPFL.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.