Mauricio de Sousa escreve sobre o quadrinista que considera 'um outro pai'

Criador da Turma da Mônica diz que Will Eisner promoveu sua verdadeira entrada na linguagem dos quadrinhos

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Mauricio de Sousa

Meu primeiro contato com quadrinhos foi aos 4 ou 5 anos de idade, quando encontrei um resto de gibi jogado em um cesto de lixo na rua.

Levei para casa e pedi a meus pais que lessem para mim aquelas historinhas com aventuras de heróis. O interesse foi tanto que eles começaram a me trazer mais quadrinhos, até que pedi para minha mãe me ensinar a ler, porque não queria mais depender dos horários em que eles podiam fazer isso por mim. Em três meses, aprendi a ler o básico e nunca mais parei.

Mas minha verdadeira entrada na linguagem dos quadrinhos, que me serve de inspiração até hoje, foi quando descobri as histórias do Spirit, de Will Eisner.

​Eu tinha dez anos quando vi aquele personagem na revista Gibi. Ele era diferente dos outros heróis da época: era humano, tinha fragilidades, apanhava um bocado dos bandidões grandalhões e, às vezes, se sentia atraído por voluptuosas vilãs.

Eram os anos 40 e eu ficava elétrico de inspiração com a dinâmica que Eisner dava àquelas histórias, cheias de sentimento, com um herói sem superpoderes nas ruas da periferia de Nova York, desenhadas com ângulos diferenciados e não usuais nos outros quadrinhos.

Claro que, mais tarde, meus próprios desenhos seriam bem mais simples, até porque eram voltados para um público infantil. Mas foi aquilo que me fez sentir que a linguagem dos quadrinhos é uma revolução de ideias, muito bem colocada entre a literatura e as artes gráficas.

Nunca nenhum autor teve coragem de tratar seu herói com tanto respeito por sua humanidade quanto Eisner fez com Spirit.

Não por acaso, Eisner foi inspiração até para planos em branco e preto de filmes de Orson Welles. A cidade era vista na perspectiva de um drone, se isso existisse nos anos 40. A ideia de criar sempre algo novo vinha desde os títulos das histórias, onde o nome "The Spirit" era escrito sempre de forma diferente.

Eisner tinha facilidade especial em manter um ritmo que trazia o leitor para dentro da história, fazendo com que comprasse a ideia de que aquilo realmente estava acontecendo.

Lembro uma história em particular, chamada "A História de Gerhard Shnobble". Nela, o personagem do título descobre que sabe voar aos oito anos de idade, mas, por repressão de seus pais, é obrigado a esconder essa condição e, por isso, vive tristonho e resignado.

Passa o tempo, ele cresce e vai trabalhar como vigia noturno de um banco. A agência é assaltada, e ele, despedido. Sem ânimo de viver, ele lembra que pode voar, sobe até o topo de um edifício e voa. Mas aqueles mesmos bandidos (que fogem e são caçados pelo Spirit) começam a atirar. Gerhard morre em pleno voo, por uma bala perdida, e cai ao chão.

Ao final, Eisner dá uma lição de vida pelo texto do narrador:

"Mas não chore por Shnobble. Antes, derrame uma lágrima por toda a humanidade. Pois ninguém, em toda a multidão que viu o corpo ser removido, soube, ou sequer suspeitou, que nesse dia Gerhard Shnobble tinha voado".

A dimensão desse conto de apenas sete páginas demonstra o quanto uma HQ pode fazer transbordarem sentimentos e, embalados por aqueles traços cheios de vida, fazer com que pensemos no que deixamos de lado em nossas vidas.

Sinto Eisner como um outro pai. Um pai amoroso, que espargiu mensagens lindas e carinhosas emolduradas em desenhos maravilhosos que captei desde criança —eu e milhares de leitores espalhados pelo mundo.

Fui contemplado com o prazer de conhecê-lo pessoalmente —e até alimentar uma amizade— durante suas vindas ao Brasil e minhas idas a sua casa em Miami. E pelo modo como me tratava, acho que ele desconfiava que eu era mais um filho dele.

Aliás, ao escrever sobre meu mestre Will Eisner, me reportei para aqueles tempos em que minha esperança na vida era realizar sonhos e voar. Mesmo que ninguém visse ou desse qualquer importância para isso, lendo suas historinhas do Spirit, eu consegui voar. 


Mauricio de Sousa, 82, desenhista consagrado, é criador dos quadrinhos da Turma da Mônica.

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