Novo 'Manual da Redação' pode ajudar jornalista a navegar em mundo confuso

Livro propõe boas soluções para situações difíceis que repórteres e editores enfrentam, analisa Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman

RESUMO Autor analisa o novo 'Manual da Redação' da Folha, lançado em fevereiro. Ele afirma que o livro propõe boas soluções para situações difíceis que repórteres e editores enfrentam no dia a dia da profissão. Na sua avaliação, merece destaque a ênfase dada ao comportamento dos jornalistas, necessária pelo advento das redes sociais.

 

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'Manual da Redação' da Folha de S.Paulo, na versão lançada em fevereiro. - Gabriel Cabral/Folhapress

Não é fácil a vida de quem escreve um manual de jornalismo. A pessoa precisa equilibrar-se entre objetivos muitas vezes contraditórios, e as armas de que dispõe, as recomendações e determinações, estão, como os artigos do Código Penal, fadadas a serem desrespeitadas com inquietante frequência. 

Um manual pode considerar-se exitoso quando escapa ao erro vexaminoso e quando seus princípios e pressupostos teóricos acabam sendo incorporados à cultura jornalística geral —um efeito de baixa visibilidade e que pode levar anos ou até décadas para materializar-se.

Por esses parâmetros, dá para dizer que o "Manual da Redação" da Folha é bem-sucedido. Ele acaba de chegar à sua quinta versão, cuidadosamente elaborada pelos jornalistas Uirá Machado, Paula Cesarino Costa, Suzana Singer e Vera Guimarães Martins, auxiliados por um pequeno exército de colaboradores e consultores.

Até aqui ninguém mostrou nenhum equívoco embaraçoso na nova versão, e, considerando o conjunto de edições, alguns dos padrões de jornalismo almejados pela Folha, que podiam soar como excentricidades quando explicitados pela primeira vez no "Manual" de 1984, tornaram-se moeda corrente na imprensa brasileira. 

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Primeira versão do 'Manual da Redação' da Folha, de 1984. - Gabriel Cabral/Folhapress

É o caso do famoso "outro lado", o princípio segundo o qual reportagens que tragam informações desfavoráveis a pessoas ou entidades devem necessariamente ouvi-las e trazer suas versões. Pode parecer incrível, mas isso não era óbvio até um passado relativamente recente.

Antes de prosseguir, porém, em nome da transparência, sinto-me no dever de informar que integrei a comissão que compilou a terceira encarnação do "Manual", a de 1992. Se o leitor julgar que isso de alguma forma afeta minhas observações aqui, pode aplicar os descontos que considerar necessários.

Retornemos às agruras do manualista. Por que suas recomendações muitas vezes caem no vazio? A razão principal é que manuais, como mandamentos legais, tentam domar vieses, ou seja, legislam contra a natureza humana. Em outras palavras, são justamente as atitudes antijornalísticas em que as pessoas incorrem naturalmente que tendem a tornar-se objeto de prescrições.

São muitas as áreas de tensão entre os apetites naturais de repórteres e editores —humanos e sempre sedentos por audiência— e as regras do que se convencionou chamar de bom jornalismo. 

Gosto particularmente do verbete "interesse público e interesse do público". Ele subsume um amplo leque de dilemas com os quais o jornalista se depara na hora de decidir o que vai ser publicado, como a oposição entre notícia séria e fofoca, direito à informação e direito à privacidade, precisão e sensacionalismo, equilíbrio narrativo e a curiosidade por detalhes mais vulgares.

A solução do "Manual", creio, é a possível. Diz que o interesse público deve prevalecer, mas sem ignorar que o interesse do público, com tudo de duvidoso que possa carregar, também precisa ser satisfeito. Um jornal, afinal, só sobrevive se conseguir manter uma base de leitores capaz de atrair anunciantes.

O verbete ainda tenta colocar balizas para nortear a decisão: "Nem toda curiosidade, porém, deve ser atendida. As relacionadas a aspectos mórbidos, por exemplo, devem ser descartadas, bem como aquelas cuja divulgação implique violar a privacidade de alguém sem motivo de notório interesse público".

Se o remédio deixa um pouco a desejar, é porque essa é a parte difícil. Não existe uma regra a priori para definir o que é notícia e o que é bom gosto. Seja como for, apenas trazer essas questões para o radar de preocupações do jornalista já é um passo, pois é razoável esperar que uma decisão refletida seja superior a uma tomada de supetão.

PRÁTICA E TEXTO

A oposição entre circunspecção e paixão —entre o apolíneo e o dionisíaco, se é lícito recorrer a categorias nietzschianas— é um tema que perpassa horizontalmente todas as partes do manual. Sua presença é marcante no capítulo "Prática", que traz dicas sobre a elaboração de reportagens e sua edição. Quais os limites entre provar uma tese e torturar a realidade para encaixá-la na narrativa desejada? Devo publicar fotografias informativas, mas que tendem a chocar parte dos leitores?

A propósito do último ponto, tenho uma história para contar. Ao longo de 30 anos na Folha, tive meu trabalho na edição censurado uma única vez. Eu quis publicar uma foto do que restou da cabeça da mulher-bomba que assassinara Rajiv Gandhi em 1991, mas alguém mais poderoso do que eu achou que a imagem era forte demais. A foto era horrível mesmo, mas trazia informação de interesse público.

Até admito que a discussão seja cabível quanto à edição impressa, em que as fotos surgem sem aviso diante do leitor, às vezes enquanto ele toma café da manhã. Na edição eletrônica, porém, em que é possível pôr um aviso sobre a natureza das imagens antes que o internauta as acesse, o dilema deixa de existir.

Desde que a foto ou o vídeo sejam verdadeiros e não violem direitos, não há motivo para deixar de publicar nada que tenha relevância, por mais chocante ou nojento que seja. Não cabe ao jornal edulcorar o mundo. Lamentei não ver no "Manual" determinação mais forte em relação ao compromisso da Folha em não esconder nada.

De forma um pouco mais sutil, a dicotomia aparece também em "Estilo", com recomendações sobre escolha de palavras e estruturas narrativas. Qual deve ser o tom do texto? Posso utilizar ironia, gírias, jargão? Superlativos e hipérboles têm lugar na Folha?

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'Manual da Redação' da Folha, em sua edição mais recente - Gabriel Cabral/Folhapress

Gostei bastante das dicas de como escrever bem, extraídas, entre outras fontes, de guias de estilo lançados há pouco no Brasil, como o de William Zinsser e o de Steven Pinker. Não estou muito certo, porém, de que dividir a seção "Texto" nos capítulos "Estilo", "Língua Portuguesa" e "Padronização" tenha sido uma decisão muito sábia.

Entendo que o picotamento dê densidade a cada um dos temas destacados, mas receio que ele encerre uma má compreensão do fenômeno linguístico. Aquilo a que chamamos de gramática prescritiva, as tais das regras de português, nada mais é do que padronizações e escolhas estilísticas que filólogos do passado quiseram universalizar. 

É claro que um jornal não pode praticar a anarquia linguística. Precisa não só seguir a chamada norma culta do idioma, preferencialmente despida de grandes afetações, como também tem de estabelecer convenções para uma série de itens em que as gramáticas são omissas ou muito permissivas. Devemos escrever "New York", "Nova York" ou "Nova Iorque"? 

Se o jornal quiser ter uma identidade, todos os seus profissionais precisam seguir o mesmo padrão. Mas reconhecer isso não implica coonestar a ideia, equivocada, de que há diferenças de essência e hierarquicamente significativas entre erros, convenções e preferências idiossincráticas de alguns autores.
No mais, o fato de que vários verbetes que estão em "Padronização" ou "Estilo" poderiam ser transpostos sem problema para "Língua Portuguesa", e vice-versa, serve como argumento adicional à tese de que não faz muito sentido segmentar tanto a matéria.

CONDUTA

Nossa velha oposição entre sobriedade e intensidade ressurge, de forma um pouco mais surpreendente, em "Conduta". Posso mentir para fontes? Preciso declarar conflitos de interesse? Posso receber presentes de fontes e empresas? Como agir nas redes sociais? 

No que talvez seja a mais notável diferença desta versão do "Manual" para as anteriores, deu-se muito maior ênfase às normas que devem pautar o comportamento dos jornalistas da Folha. Se, nas edições anteriores, elas apareciam de forma tímida e dispersa, nesta ganharam um capítulo exclusivo.

Uma das principais razões para a mudança é o advento das redes sociais, que esmaeceram ainda mais a fronteira entre o espaço privado e a face pública das pessoas.

Quando um jornalista faz um comentário político no Facebook ou mesmo conta uma piada, ele está se expondo publicamente. E essa exposição pode ter repercussões sobre o seu trabalho. Se ele, justa ou injustamente, ficar marcado como militante de um partido, por exemplo, pode perder sua credibilidade não só com fontes mas também com leitores e pode até prejudicar o trabalho de seus colegas de jornal.

A redução da esfera da privacidade é um fenômeno triste, mas nem por isso menos real. Assim, não vejo como o jornal poderia se furtar a regular a questão. A solução encontrada me parece boa. A Folha não proíbe seus jornalistas de participar de redes. Ao contrário, os incentiva. Mas lista os inúmeros riscos a que estão sujeitos e recomenda cautela e boa educação. Lembra que os profissionais, de uma forma ou de outra, responderão por seu comportamento nas redes.

E essa é uma lição que as pessoas insistem em não aprender, como se pode ver pela sucessão de casos de indivíduos que se deram muito mal por fazer comentários pouco cuidadosos na internet. 

Se a vida do manualista não é fácil, a do jornalista não é melhor. Também ele precisa equilibrar-se entre princípios nem sempre compatíveis e seus próprios impulsos igualmente contraditórios —e num contexto em que a atividade jornalística passa por profundas transformações. A esperança é que o "Manual" o ajude a navegar melhor nesse mundo cada vez mais confuso. O material oferecido é muito bom. Resta saber o que cada um vai fazer com ele. 


Hélio Schwartsman, 52, bacharel em filosofia, é colunista da Folha e autor de "Pensando Bem..." (Contexto).

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