Victor Hugo escreve sobre encontro com espírito de Shakespeare; leia trecho

Francês transcreve, em "O Livro das Mesas", registros de sessões espíritas realizadas no exílio no Reino Unido

Victor Hugo tradução André Telles

SOBRE O TEXTO O texto abaixo integra "O Livro das Mesas", que a Três Estrelas publica neste mês. A obra é transcrição dos cadernos nos quais o escritor francês registrou as sessões espíritas que realizou entre 1853 e 1855, em seu exílio no Reino Unido. Ele conta ter recebido espíritos ilustres como Jesus Cristo, Maomé, Rousseau, Dante, Napoleão e Molière.

desenho em preto e branco
Ilustração para Imaginação - Carla Chaim

Sexta-feira, 13 de janeiro de 1854. Presentes: Victor Hugo, Auguste Vacquerie. À mesa: sra. Victor Hugo, Charles Hugo. (Ata C. D.)

– Teu nome?

Shakespeare 1

Victor Hugo: Considero da mais alta importância saber se, antes de responderes a nosso chamado, nos concedeste a grande honra de vir por iniciativa própria. Diz então: foste tu que já vieste?

Sim.

– Tu sabes que te consideramos um dos quatro ou cinco maiores criadores da humanidade. Podes nos relatar o que aconteceu no túmulo e o encontro que ocorreu em 23 de abril de 1616?

Beijei Corneille quando ele nasceu.

– Eu não disse 1606, e sim 1616. Recolhe-te e verifica se nesse dia Shakespeare não encontrou outro imenso representante do pensamento humano.

Não.

– Entretanto, em 23 de abril de 1616, Cervantes morreu, mesmo dia e quase a mesma hora que tu. Porventura não o encontraste? Queres responder?

Não.

– Dizes que não queres responder ou que não o encontraste?

Miguel de Cervantes não morreu à mesma hora que eu.

– Mas morreu no mesmo dia. Vós provavelmente vos encontrastes no meio para onde fostes. Dois gênios como vós deviam ter o que se falar. O que dissestes um ao outro?

Quando morremos, assumimos instantaneamente a idade de todos os mortos, isto é, da eternidade. No céu, não existe quem chegou primeiro e quem chegou por último. Todos têm uma segunda vida e essa segunda vida dura 100 milhões de anos. Perguntar a um morto: há quanto tempo estás no céu?, é perguntar a um raio: há quanto tempo estás no Sol? Uma alma é uma irmã sem primogênita. O infinito não é o primogênito do amor. A eternidade não nasceu antes do gênio. Todos os grandes espíritos são gêmeos. Dante não é o caçula de Ésquilo, Sófocles não é o benjamim de Homero, Shakespeare não é o irmão mais moço, Jó não é o mais velho, Isaías é tão centenário quanto Moisés. O Horeb é tão secular quanto o Sinai. A ideia tem filhos, mas não netos. Se interrogares o raio sobre sua idade, ele te dirá: pergunta ao relâmpago. Se interrogares o relâmpago, ele te dirá: pergunta ao raio. Vi Cervantes uma vez. Ele me cumprimentou e falou: "Poeta, o que pensas de dom Quixote?". E Molière, que passava, disse: "É o mesmo homem que dom Juan". E eu disse: "É o mesmo homem que Hamlet. Dom Quixote duvida, dom Juan duvida, Hamlet duvida. Dom Quixote procura, dom Juan procura, Hamlet procura. Dom Quixote chora, dom Juan ri, Hamlet sorri, os três sofrem. Na caveira que Hamlet segura, há tua lágrima, ó Cervantes, e teu riso, ó Molière. O esqueleto da dúvida se contorce sob a beleza de nossas três obras. Nós fazemos o drama, Deus o consuma. Olhai o céu, é o último ato. A lápide que se abre para nossas almas é o pano que se abre para o desenlace. Aplaude, Cervantes! Aplaude, Molière! Aplaude, Shakespeare! Deus entra em cena".

– Na presença de um gênio como tu, os pensamentos abundam e se atropelam, eis o que me ocorre em primeiro lugar. Quando estavas sobre a Terra, tu criavas, criavas depois de Deus. Agora que deixaste a Terra e habitas a verdadeira vida, a luz, o que constitui teu gênio? Vives, Shakespeare, ora, há ideias indivisíveis. Para Shakespeare, viver é criar, continuas a criar? Continuas a tua obra? Se continuas, se isso é de ti, deve ser de todos os outros gênios. De maneira que, ao lado da criação direta de Deus, haveria o que poderíamos chamar de criação indireta, isto é, a criação de Deus através dos grandes espíritos. Isso abre um horizonte imenso e inédito. Queres responder à minha pergunta? Continuas tua obra? Se continuas, é conforme o mundo dos homens, que tu habitaste, ou conforme o mundo das almas, que habitas agora? Tua obra sofre a mesma transformação que tu? Escreve-a, se a palavra escrever pode ser empregada, em uma língua nova para nós, que os homens não compreenderiam e que é a língua própria do céu? São dramas que fazes? Sobre quais paixões? Sobre qual mundo? Sobre quais ideias? Esses dramas, se fossem traduzidos, seriam acessíveis à inteligência humana? Em suma, qual é o elo que ligaria tua obra no céu à tua obra na Terra?

A vida humana tem criadores humanos. A vida celestial tem o criador divino. Criar, eis o trabalho, contemplar, eis a recompensa. Na Terra, os grandes espíritos criam para moralizar, mas no céu tudo é moral, tudo é bom, tudo é justo, tudo é belo. O céu seria incompleto se eu criasse alguma coisa, uma obra-prima destituiria Deus. Estou condenado à admiração, eu, o admirado. Estou perdido na multidão dos espectadores, eu, o criador. Deus cultiva um canteiro de semideuses. Orfeu, Tirteu, Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Moisés, Ezequiel, Isaías, Daniel, Esopo, Dante, Rabelais, Cervantes, Molière, Shakespeare e outros que entrevejo sem conhecê-los, no infinito, estamos sentados pensativos diante da luz do Eterno. Jesus está de joelhos. A luz nos ilumina e ofusca. A vida nos arrebata e transborda, se tu visses todos esses profetas, todos esses magos, todos esses poetas e todos esses gênios, sentados em círculo ao redor de Deus, tu não me perguntarias se eu crio. Não, eu olho, não, eu escuto, não, sou um átomo atento diante da imensidão. Sou um grande homem que abdica perante o infinito. Eu caio arcanjo. Desço pequeno do pedestal e jogo fora minha auréola. Sou um sonho cujo despertar é a morte. Eu tinha a arte, agora tenho o amor. Minhas criações deixaram suas asas no túmulo. O amor é a arte ressuscitada. A arte caminha rumo à porta do céu, apenas o amor entra lá. A felicidade é uma meca eterna cujo peregrino é a arte e cujo anjo é o amor.

– Vieste a pedido de André Chénier. Podes, igualmente, pedir a André Chénier que volte e nos dizer quando ele voltará?

Sim.

– Quando ele voltará?

Dentro de dez dias.

– No 23?

Sim.

Victor Hugo sai.

Sra. Hugo: Tu dizes que vós não criais mais na vida em que estais. Como é possível que, por sua vez, André Chénier só pense em criar, em terminar suas obras?

A vida me coroou, ao passo que decapitou Chénier. Chénier ainda tem alguma coisa a dizer à vida. Quanto a mim, não falo mais senão com Deus ou em Seu nome. Shakespeare é pai de sua obra. Chénier é órfão da sua.

Encerrado à meia-noite.

1 De repente o filho ergueu a voz e interrogou o pai:

– O que pensas desse exílio?

– Que será longo.

– Como espera vivê-lo?

O pai respondeu:

– Contemplarei o oceano.

Houve um silêncio. O pai continuou:

– E tu?

– Eu – disse o filho – traduzirei Shakespeare. (In: Hugo, Victor. William Shakespeare, t. I)

Nessa conversa inicial entre Victor Hugo e seu filho François-Victor, travada no salão de Marine Terrace, em Jersey, em uma manhã de novembro de 1852, transparecem as intenções respectivas de pai e filho naqueles primeiros tempos de exílio. Era grande, portanto, a expectativa de François-Victor pela aparição do dramaturgo inglês, embora, na época, ele ainda não dominasse a língua inglesa.

A ortografia do nome do dramaturgo inglês nas atas e nos dois cadernos é: Shakspeare. Alteramos para a forma vigente.

Shakespeare aparece pela primeira vez na mesa de Marine Terrace na sexta-feira 13 de janeiro de 1854. Victor Hugo está presente. Shakespeare voltará regularmente até o fim de 1854, data em que termina o caderno de 1854. A intervenção de Shakespeare reproduzida em nossa edição, escrita de próprio punho por Victor Hugo, começa em 22 de janeiro de 1854. As atas acham-se transcritas em folhas numeradas de 2 a 11 (Maison de Victor Hugo, Paris). Shakespeare faz parte dos catorze gênios da humanidade listados como tais por Hugo em William Shakespeare: "Homero, Jó, Ésquilo, Isaías, Ezequiel, Lucrécio, Juvenal, Tácito, São João, São Paulo, Dante, Rabelais, Cervantes, Shakespeare". Nessa lista, contudo, se alguns "são grandes, Ésquilo e Shakespeare são imensos" (William Shakespeare, t. II, 1).


Victor Hugo (1802-1885), autor de "Os Miseráveis", foi um dos maiores romancistas da França.

André Telles, 61, tradutor de francês há mais de 20 anos, venceu o Jabuti por traduções de "O Conde de Monte Cristo" e "Os Três Mosqueteiros".

Carla Chaim, 34, é artista plástica. Sua exposição "A Pequena Morte" começa na segunda (9) na Galeria Raquel Arnaud.

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