Descrição de chapéu Livros

Como o sexto filho de família semianalfabeta revolucionou a editora da USP

Plinio Martins Filho editou mais de 1.600 obras e venceu o Jabuti com seu 'Manual de Editoração e Estilo'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

[RESUMO] Professor da ECA-USP desde a década de 1980, Plinio Martins Filho revolucionou a Edusp, onde atuou por 26 anos e editou mais de 1.600 obras. Seu livro “Manual de Editoração e Estilo” venceu o Prêmio Jabuti de 2017, o primeiro dele como autor. Como editor foram mais de 80.

 

Na manhã de quinta-feira, 3 de março de 2016, a página 74 do Diário Oficial dizia: “Declarando cessados os efeitos da designação do prof. dr. Plinio Martins Filho como diretor-presidente da Edusp; designando a profa. dra. Valéria de Marco para responder pelo expediente da Edusp”.

Professor da ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) desde 1986 e diretor-presidente da editora da universidade desde 1999, Plinio Martins Filho, 67, recebera a notícia do afastamento do cargo na tarde anterior, mediante breve ligação telefônica de um assistente, “um cara”, ele diz. “Diário Oficial não se discute”, pensou, limpando sua sala. 

plinio folheando página grande com caneta na mão
O professor Plinio Martins Filho, autor do "Manual de Editoração e Estilo" - Pedro Tajiki Salles

“A universidade é um microcosmo político do mundo”, diz Plinio durante conversa na colorida sala da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. “Mas não sou político. Nem intelectual. Sou só um editor. Não tenho grandes voos. O único foi este livro, um voo de mais de dez anos. E cada livro tem uma história”, afirma sobre o “Manual de Editoração e Estilo”, vencedor na categoria comunicação do Prêmio Jabuti de 2017, idealizado como manual para a Edusp.

Nascido em Pium (TO), Plinio editou cerca de 700 livros na editora Perspectiva e 1.600 na Edusp. Além do “Manual”, assinou apenas três em voos solo: “Ex-Libris” (2008), “Edusp: Um Projeto Editorial” (2001) e “A Arte Invisível” (1997). Ao todo, as obras que passaram pelas suas mãos somam mais de 80 Jabutis.

“Nunca tive ambições intelectuais. Para mim, tudo era questão de sobrevivência. Era saber se teria comida no prato no dia seguinte”, diz sobre sua trajetória dedicada às letras. “É o medo que só migrante sabe, de passar fome e frio, saber se você terá onde dormir e o que comer no outro dia.” 

Sexto filho de uma família simples e semianalfabeta, Plinio trabalhou na roça na infância. Foi alfabetizado nos arredores de uma antiga jazida de cristal de rocha, a cidade de Cristalândia (TO). “F” foi a primeira letra que aprendeu. Era o formato do ferro que marcava o gado na fazenda Pau Ferrado, onde seu pai, vaqueiro, trabalhava. A mãe era costureira. 

Estudou em Porto Nacional (TO) e Ceres (GO), até que a família se mudou para Brasília. Um dos irmãos foi para São Paulo, e Plinio foi incumbido de segui-lo para convencê-lo a voltar ao cerrado. Não voltaram. 

Era fevereiro de 1971. Aos 20, Plinio conseguiu um trabalho, o primeiro, no depósito da editora Perspectiva, fundada pelo crítico Jacó Guinsburg em 1965. Não tinha nenhuma familiaridade com as letras ou os números. 

“Um semianalfabeto diante de livros de Jacques Derrida e Pierre Bourdieu. Para os números era pior ainda. Mas, na hora do almoço, ia espiar o que acontecia no segundo andar, onde trabalhavam os revisores. Queria entender o que eles faziam”, recorda-se. 

Ao notar o interesse e o potencial do novato, Guinsburg o levou para a revisão, departamento liderado por Geraldo Gerson. Ali Plinio aprendeu o ofício lentamente, linha a linha, página a página. Gerson, que se tornou um amigo, deu-lhe um dicionário: “Te vira, cara. Quem resolve dúvida de revisão é dicionário e regra de gramática. Aprenda”.

“Pensei que estava enlouquecendo. As palavras desmanchavam na cabeça. Era uma agonia, um sufoco. Às vezes passava um dia para ler uma página. Mas eu sabia que, se era para ter um futuro, era ali”, lembra Plinio. 

Como não tinha formação acadêmica nem conhecia o conteúdo dos livros, preferiu se preocupar primeiro com a forma. Assim, suas revisões se pautavam pela estrutura dos textos, canetando repetições de palavras, redundâncias, aliterações e vícios de advérbios dos autores. Depois, ele se dedicou a aprender a produção do livro, os tipos de papel, letra, entrelinha.

“Plinio é um ‘self-made man’. É um batalhador. Diria que ele deve à Perspectiva muito de seu desenvolvimento técnico e cultural. Dentro da editora, conheceu inclusive a mulher, Vera Bolognani. Então você pode dizer que ele tem duas dívidas com a editora: a profissão e o casamento”, diz, em tom de brincadeira, Guinsburg, 96.

O professor Jacó Guinsburg na sede da Editora Perspectiva em São Paulo - Lenise Pinheiro - 19.dez.2016/Folhapress

O primeiro diploma só viria em 1980, na Faculdade Paulistana de Ciências e Letras, atual UniPaulistana. Enquanto estava na Perspectiva, cursou psicologia, mas pouco praticou o atendimento a pacientes.

“Descobri que é mais fácil lidar com livros do que com pessoas”, diz Plinio, que decidira se tornar um editor. Desfez-se dos materiais de psicologia e começou a montar uma biblioteca de livros sobre livros.

Ao longo dos 18 anos que passou na Perspectiva, Plinio teve Guinsburg, professor emérito da USP, como mentor. Tornou-se produtor e depois gerente da prestigiada editora, dialogando com literatos e acadêmicos, autores das coleções “Debates”, “Estudos” e “Elos”. Entre eles estavam professores da USP como Ismail Xavier, José Teixeira Coelho Netto e Jerusa Pires Ferreira

Guinsburg e Jerusa aconselharam Plinio a buscar uma pós-graduação. “Não quero ser professor, não vou fazer pós”, ele respondia. 

Jerusa começou a convidá-lo para conversar com os alunos sobre o processo de edição —e a pressioná-lo para prestar concurso para o quadro da universidade. “Eu não tinha a mínima condição. Imagina, ser professor da USP. E o concurso era entre o Natal e o Réveillon, ia ver minha família”, recorda-se. 

Na terceira vez em que Jerusa amigavelmente o pressionou, Plinio participou do processo seletivo: ficou em segundo lugar e foi convocado a assumir, em 1986. 

“Plinio era um menino tímido, muito modesto, apaixonado por livros”, lembra Jerusa, 80. “O curso de editoração era incipiente. Eu era professora da Universidade Federal da Bahia e fui fazer doutorado na USP. Levava uma bagagem baiana e experiência de estudos na Itália e Portugal. Plinio, conhecedor dos caminhos da edição, colocava seu saber em prática. Juntos consolidamos o curso.”

Ao lado de Guinsburg e Jerusa, Plinio criou centros de estudos e o projeto “Editando o Editor”, ativo desde 1988. Segundo Jerusa, a iniciativa inclui seminários e livros sobre a trajetória de titãs do mercado editorial como Jorge Zahar, Guilherme Mansur, Samuel Leon, Ênio Silveira e Arlindo Pinto de Souza.

Na universidade, Plinio inaugurou um curso intitulado “Do autor ao leitor”, que ensinava o passo a passo do livro, passando pela seleção dos autores, revisões, projetos gráficos, composições, impressão, distribuição e divulgação. “Um livro só existe se chegar ao leitor”, diz.

O crítico literário João Alexandre Barbosa (1937-2006) assumiu a presidência da Edusp em 1988, indicado pelo reitor José Goldemberg. Na época, buscava-se uma profissionalização e reformulação estrutural da editora universitária —e Barbosa convidou Plinio para a missão, mantendo-o como diretor editorial de 1988 a 1998.

Guinsburg não gostou da saída de Plinio da Perspectiva. “Depois de um breve momento de relutância, retomamos a amizade de décadas. Além de um dos melhores amigos no campo, Plinio é até meu editor. O editor virou editado”, conta Guinsburg.

Enquanto editora universitária, a Edusp não busca best-sellers necessariamente, mas contribuir com a educação, a cultura e a ciência do país. Fundada em 1962, vinha atuando apenas como financiadora e parceira nas publicações, ocupando a posição secundária de coeditora.

Antes de Barbosa, a presidência fora ocupada por Mário Guimarães Ferri, de 1964 a 1985, e Oswaldo Paulo Forattini, Carlos da Silva Lacaz e José Carneiro por breves períodos. 

A partir de Barbosa e Plinio, a Edusp se tornou efetivamente editora universitária, com a instauração de departamentos e políticas próprias, lançamento de coleções e publicação de teses da universidade e livros de intelectuais importantes. 

Plinio assumiu a presidência após a gestão de Sergio Miceli (1994-99).

A transformação é visível nos números. De acordo com o “Anuário Estatístico da USP”, em 1987, foram 41 obras coeditadas e nenhuma edição própria; em 1988, 69 coedições e 4 edições próprias; em 1992, 14 coedições e 38 edições; em 2001, 4 coedições e 108 edições. 

plínio em frente a livros
O professor Plínio Martins Filho, em escritório da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP. - Pedro Tajiki Salles

Tamanha transformação se tornou objeto de estudo de Plinio na dissertação de mestrado que resultou no livro “Edusp: Um Projeto Editorial” (2001). Inicialmente, ele pretendia dedicar o mestrado à história da Perspectiva, mas, uma vez na Edusp, decidiu mudar o projeto.

O imprevisto o fez pedir prorrogação de prazo. Para sua surpresa, a comissão de pós-graduação sugeriu catapultar o trabalho a um doutorado direto —mas a ideia foi barrada pelo então diretor da ECA, José Marques de Melo. 

“Como a Edusp sempre foi a minha principal ocupação na universidade, dediquei-me com afinco a ajudar torná-la o que ela é hoje, e deixei em segundo plano minha carreira acadêmica. Um dia, (...) contando esta história, disse que naquele momento não iria fazer doutorado e que se eu tivesse que ter o título de doutor seria pelo meu trabalho como editor e não por uma tese. A professora Mayra Rodrigues Gomes ouviu esta conversa e ligou-me mais tarde informando que isso era possível e se dispôs a me orientar”, Plinio conta no seu memorial de tese, defendida como notório saber, condição aprovada em 2006.

Na banca da tese de doutorado “Manual de Editoração da USP” estavam Paulo Franchetti, da Unicamp (Universidade de Campinas), e Wander Melo Miranda, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). 

“Assim que li o material, antes da defesa, pensei imediatamente em publicar. Era o livro que faltava para os funcionários da editora da Unicamp, que eu dirigia —e imaginei que faltaria em toda editora que prezasse pela qualidade editorial”, diz Franchetti, 63.

Após a defesa, Franchetti e Miranda fizeram formalmente a proposta de publicar a tese. Foram dez anos de trabalho no texto, até 2016, pois Plinio decidira fazer a edição ele mesmo: lia, reescrevia, revisava, esquecia o projeto por um tempo, relia, reescrevia, revisava novamente, deixava a ideia hibernando mais uma vez e tempos depois retomava o original.

“O papel do revisor é fundamental, pois não existe pior revisor do próprio livro do que o autor. Quando você escreve, toda vez que for ler, você quer mexer no texto”, diz Plinio. Na folha de rosto do livro constam como colaboradores Gerson e, em ordem, Maria Cristina Marques, Aristóteles Angheben Predebon, Naiara Raggiotti, Thiago Mio Salla, Lucas Legnare, Vera Lucia B. Bolognani e Adriana Garcia. 

Com mais de 700 páginas, o “Manual de Editoração e Estilo” saiu sob o selo da Unicamp, com USP e UFMG como coeditoras.

Manual de Editoração e Estilo

  • Preço R$ 120 (728 págs.)
  • Autoria Plinio Martins Filho
  • Editora Unicamp, Edusp e UFMG

​Plinio já não estava à frente da Edusp quando da publicação do “Manual”. Deixou a presidência em 2016, posição ocupada hoje por Valéria de Marco, da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas). 

“Uma editora deve ser independente. Ela não se rende às vaidades de uns, nem aos preconceitos de outros; ela não adere cegamente aos modismos; ela não existe para preencher interesses políticos de nenhuma natureza. Seu compromisso é com a qualidade. Seu compromisso é com o leitor”, diz a carta de Plinio divulgada após sua demissão. 

Ele relata que sua sucessora “não demonstrou muito interesse em editar e publicar o livro”. Conta que ela lhe pediu o original para passá-lo por um parecerista. “Mas não fazia sentido passar por um julgamento da Edusp novamente, pois o contrato de coedição já estava assinado com a editora da Unicamp, com verba aprovada e tudo mais”, diz. 

Procurados pela reportagem, Marco Antonio Zago, reitor à época, e a professora De Marco não retornaram aos diversos pedidos de entrevista. 

Franchetti ameniza a intriga: “A Edusp não liderou [a publicação] por um motivo simples: o livro foi apresentado como tese e eu, na banca, já tomei a iniciativa. De modo que não restou à Edusp senão o papel de coeditora. A Unicamp simplesmente não podia perder essa honra”. 

Plinio costuma frisar que não faz política na universidade. “Minha política é meu trabalho como editor. Fico feliz que muitos reitores aceitaram meu trabalho e continuei. Mas, como tudo, a universidade é um jogo político, uma pessoa se elege com apoio de um grupo”, afirma. “Filho feio não tem pai. Mas, quando a editora começou a se destacar, todo mundo a queria. Não posso dizer nomes. Só posso dizer que minha sobrevivência nesse tempo todo lá foi um mistério”, diz. 

“Por que Plinio sobreviveu por 26 anos na Edusp sem vassalagem ao poder? Porque a USP teve certa diversidade do pensamento cultivado por grandes nomes da ciência, como Antonio Candido, Aziz Ab’Sáber, Crodowaldo Pavan, Mario Schenberg, José Leite Lopes e muitos outros”, opina o jornalista científico Ulisses Capozzoli.  

“[Mas] essas inteligências se foram, ou estão indo os últimos remanescentes. A universidade definha em articulação com um movimento de retrocesso que permeia toda a vida intelectual, política e social do país. Em momentos como esse, a mediocridade emerge com todo seu descarado oportunismo. Creio que Plinio foi retirado da Edusp neste contexto”, afirma Capozzoli. 

O jornalista está escrevendo uma biografia do editor, com lançamento previsto para o aniversário de 50 anos da editora da Universidade Federal do Pará, em abril de 2019. O evento fará uma homenagem a Plinio, como patrono da editora, com a exposição “Plinio Martins Filho: Um Homem Feito de Livros”. 

Paralelamente à Edusp, Plinio continuou lecionando na ECA, onde coordena a Com-Arte —fundada em 1973, é a única editora-laboratório dentro de um curso de editoração no Brasil.

Envolvido com instituições como a Liga de Editoras Universitárias e a Câmara Brasileira do Livro, Plinio também idealizou a Feira do Livro da USP (modelo posteriormente importado por outras universidades) e fundou a Ateliê Editorial com Afonso Nunes Lopes, em 1995. 

O primeiro livro da casa, instalada na garagem de Plinio, foi o romance de estreia do escritor Rodrigo Lacerda, “O Mistério do Leão Rampante”, laureado com o Jabuti de 1996. 

Após o quinto título, Lopes decidiu sair da Ateliê, deixando-a sob direção de Vera Bolognani e seus filhos, Gustavo e Tomás. O primeiro trocou a literatura pelo humor, passando a integrar a equipe de roteiro do talk show de Fábio Porchat na Record. 

O segundo fez pós em administração de empresas, investigando a viabilidade de uma editora familiar como negócio —e concluiu que o modelo não era exatamente lucrativo, funcionando como um tipo de ONG. 

Ainda assim, a Ateliê continua ativa, lançando títulos como “A Capa de Livro Brasileiro: 1820-1950” (2018), do bibliófilo Ubiratan Machado. 

Plinio é lembrado como um editor meticuloso, “do tipo tinhoso” num “trabalho de artesão”, como diz a historiadora Marisa Midori Deaecto no prefácio do “Manual”.

Virada a página da Edusp em 2016, Plinio agora se dedica a construir uma nova editora dentro da universidade: a Publicações BBM, da Biblioteca Brasiliana, voltada à cultura livresca. No catálogo estão títulos como “Rubens Borba de Moraes: Anotações de um Bibliófilo”, “As Bibliotecas de Maria Bonomi” e “Arquivo Zila Mamede: Inventário”.

“Onde ele está, ele inventa. Aposta na garotada, com a Ateliê e a Com-Arte. Agora, a BBM. Está florescendo. Este é o momento dele”, diz Jerusa. 

Plinio faz questão de dizer que não escreve, só edita. Prêmios como editor ele tinha inúmeros; o “Manual” lhe rendeu o primeiro como autor. “Feliz a gente fica até de ganhar campeonato de bolinha de gude”, desconversa. “Sempre digo: cada livro tem uma história. Esta é a do manual.”


Juliana Sayuri é jornalista e historiadora. Seu livro “Diplô: Paris - Porto Alegre” (Com-Arte) foi editado por Plinio Martins Filho.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.