Descrição de chapéu Em 1968 Cinema França

Em meio a protestos de maio, Festival de Cannes foi cancelado há 50 anos

Cineastas como Godard e Truffaut pregaram solidariedade a estudantes e trabalhadores em greve

Sérgio Rizzo

Eram 11h45 de domingo, 19 de maio de 1968, quando Robert Favre Le Bret, fundador e diretor-geral do Festival de Cannes de 1952 a 1972, convocou a imprensa para um comunicado sucinto que muitos já aguardavam: “O conselho de administração decidiu encerrar o 21º Festival Internacional de Cinema”.

Aberto nove dias antes com a exibição de versão restaurada de “...E o Vento Levou” (1939), o festival começara com um incêndio cinematográfico —o de Atlanta, na superprodução americana— e sucumbia diante da ameaça de outro, metafórico, que tomava Paris e se alastrava por outras cidades da França.

Somente 8 dos mais de 20 filmes concorrentes à Palma de Ouro haviam sido exibidos. Dois dias antes, o psicodélico “O Muro das Maravilhas”, de Joe Massot, com Jane Birkin no elenco, havia garantido a presença de dois Beatles em Cannes: George Harrison, que assinava a trilha sonora, e Ringo Starr. 

Na véspera do encerramento antecipado, algumas pessoas tomaram o palco para impedir a apresentação de “Peppermint Frappé”, do espanhol Carlos Saura. O grupo incluía o próprio diretor, a atriz Geraldine Chaplin e cineastas como Jean-Luc Godard e François Truffaut. Por sua vez, Alain Resnais retirou do festival o seu “Eu te Amo, Eu te Amo”. 

Alguns membros do júri daquela edição, como Roman Polanski e Louis Malle, já haviam participado de debates capitaneados por Truffaut e Godard, que propunham cancelar o festival. Para os dois diretores mais representativos da nouvelle vague, era preciso mostrar solidariedade aos estudantes e trabalhadores envolvidos nas manifestações.

Temendo represálias, a direção do festival cedeu. Um mês depois, Polanski declararia: “Pessoas como Truffaut, [Claude] Lelouch e Godard são como crianças brincando de ser revolucionários” —o diretor chegou a chamá-los de idiotas.

Idiotas ou não, eles não estavam sozinhos. Cannes reverberava a escalada de protestos que se multiplicavam na França e em outros países.

Claude Lelouch, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Louis Malle e Roman Polanski
A partir da esquerda, os cineastas Claude Lelouch, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Louis Malle (de pé) e Roman Polanski, no Festival de Cannes de 1968. - Traverso/RDA/Getty Images

Meses antes do festival, em fevereiro, figuras importantes do cinema francês já haviam se unido em outra batalha. No dia 9 daquele mês, durante reunião do conselho administrativo da Cinemateca Francesa, deu-se uma manobra política para derrubar Henri Langlois, lendário fundador e diretor-geral da entidade. 

A reação foi imediata. Com nomes de peso, como Fritz Lang e Charles Chaplin, um abaixo-assinado internacional pressionava o escritor André Malraux, então ministro da Cultura, a manter Langlois no cargo.

Diante da força crescente do movimento, com manifestações em frente à cinemateca, Malraux recuou. Foi com o gosto dessa vitória contra o governo De Gaulle que Truffaut e Godard decidiram incendiar Cannes.

pessoas em cima de carro
Líderes estudantis de 1968 - AFP

Em sua recriação dos eventos de 1968, Bernardo Bertolucci, com “Os Sonhadores” (2003), abordou a batalha da cinemateca de maneira afetiva: é para a antiga sede da instituição que o personagem de Michael Pitt se dirige na abertura do filme, onde encontra as tropas leais a Langlois. 

Em “Antes da Revolução” (1964), o diretor italiano já havia chegado perto de uma antevisão dos principais conflitos ideológicos de 1968. De matriz autobiográfica, o protagonista é marcado intelectualmente pelo contato com um professor marxista e oscila entre o conformismo burguês e o desejo de transformação.

O filme sugere que só poderá haver revolução quando esse impasse for superado e a consciência política puder ser traduzida em ação. 

Com luzes e câmeras, os cineastas que se engajariam no maio de 68 francês haviam partido para a ação um ano antes. “Longe do Vietnã” (1967), ensaio-manifesto idealizado por Chris Marker, reuniu curtas documentais de caráter político dirigidos por figuras como Godard, Lelouch, Resnais e Agnès Varda

Mas qualquer tentativa de investigar indícios de 1968 no cinema que o precedeu estará incompleta se não incluir “Os Incompreendidos” (1959), primeiro longa de Truffaut e aparição inaugural do personagem que seria seu alter ego na tela, Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud). 

Logo no início, Doinel é humilhado por seu professor. Na baderna da sala de aula, aparecem os jovens que mais tarde teriam idade para serem colegas universitários do líder dos protestos, Daniel Cohn-Bendit. E, no lado oposto, um representante do conservadorismo francês que certamente apoiaria Charles de Gaulle contra os jovens rebeldes.

(É tentador imaginar que alguns daqueles atores-mirins tenham circulado, adultos, pelas barricadas do boulevard Saint-Michel.)

Ao final da sequência, o educador grita para os alunos que desrespeitam suas ordens: “Pobre França! Que futuro!” —e a cena corta para uma imagem da inscrição “liberdade, igualdade, fraternidade” na entrada da escola. O futuro traria o maio de 1968, contra tudo o que representava aquele professor. 

E o futuro dos dois principais agitadores cinematográficos de 1968, aqueles que conseguiram evitar a demissão de Langlois?

O “marechal” Truffaut dedicaria “Beijos Roubados”, que estreou em setembro daquele ano, à Cinemateca Francesa.

Viria a ganhar o Oscar de filme estrangeiro com “A Noite Americana” (1973) e manteria um lugar especial no cinema francês, disposto a falar com o grande público e “permanentemente disponível” para três causas políticas, segundo os biógrafos Antoine de Baecque e Serge Toubiana: a proteção da infância relegada, a liberdade de imprensa e o direito à insubmissão no exército.

O “almirante” Godard, que participou, ao lado de Marker e Resnais, dos “Cinétracts” —pequenos filmes que registravam os eventos reais de maio e junho de 1968—, seria chamado de impostor e voyeur por filmar as manifestações, conforme relato de sua ex-mulher, Anne Wiazemsky, no recém-publicado “Um Ano Depois” (Todavia), que deu origem ao longa “O Formidável” (2017).

Louis Garrel em cena do filme "O Formidável", do diretor Michel Hazanavicius
Louis Garrel como Godard em cena do filme "O Formidável", do diretor Michel Hazanavicius - Divulgação

Ele abraçaria o maoismo e um cinema militante que o afastou de boa parte do público cativado nos anos 1960 com obras mais acessíveis.

Foram caminhos distintos e cada vez mais distantes, num afastamento que começou ainda em 1968, de certo modo refletindo a falta de unidade dos manifestantes.

Quando Godard apoiou a luta estudantil no Festival de Avignon, Truffaut recusou-se a aderir à causa, afirmando que os jovens pertenciam à burguesia, enquanto os policiais eram da classe operária. Godard, inconformado, acusou o amigo de traição.

Alguns anos depois, no lançamento de “A Noite Americana”, Godard —cujo primeiro filme, “Acossado” (1960), havia se baseado em ideia e argumento de Truffaut— escreveu uma carta chamando o amigo de “um merda num pedestal”. 

Truffaut respondeu à altura e a relação dos dois chegou ao fim.

Num balanço similar àquele feito por tantos participantes dos movimentos de 1968, todo o potencial das mobilizações morreu na praia. As batalhas da cinemateca e de Cannes foram as últimas que Truffaut e Godard venceram juntos. 


Sérgio Rizzo, 52, doutor em cinema pela USP, é jornalista, professor, crítico e curador de cinema.

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