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Existem dois Renatos, um antes e outro depois de 'Rei da Vela', diz Borghi

Ator conta que resgatou, para a peça, o teatro que havia soterrado em sua infância no Rio de Janeiro

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Renato Borghi

Existem dois Renatos: um antes e outro após “O Rei da Vela”

Até aquele momento, a minha carreira era dedicada ao estudo de Stanislávski. Meu primeiro trabalho, em 1958, foi numa peça chamada “Chá e Simpatia”. Eu era o heroizinho, dirigido pelo Sérgio Cardoso, que disse algo que me perseguiu a vida toda: “Renato, nunca abandone o teatro, mas tudo trabalha contra você. Você tem o anti-physique du rôle de um primeiro ator”.

Nos anos seguintes, já com o Teatro Oficina, me aproximei da Célia Helena, uma atriz já consagrada, e do Eugênio Kusnet, que foi muito importante na minha formação. 

 
Ele ensinava a entender qual era a vontade do personagem, mas já naquela época eu e os outros atores achávamos que ninguém é só uma coisa o tempo todo. 

Isso aumentou a complexidade do nosso estudo: o grupo estava à procura de muita coisa ao mesmo tempo, não éramos domesticados por uma cartilha. O ator é uma espécie de antena parabólica que capta as tendências do mundo. Então não basta ter talento, é preciso estudar, passar por processos criativos —nem que seja para superá-los. 

A peça que coroou esse período inicial de pesquisa foi “Pequenos Burgueses” (1963), de Máximo Górki. Estourou de uma maneira que o Oficina ainda não conhecia. “Andorra”, em 1964, foi nossa transição do realismo para o teatro épico. 

Passei por todo esse processo com muita dedicação. Mas a ditadura foi apertando e começou a perseguição contra os artistas. Em 1966, o Oficina pegou fogo —até hoje não se sabe a causa. Entramos numa fase de juntar dinheiro para construir outro teatro e lançamos um festival retrospectivo pelo Brasil. 

Nessas viagens, passamos a fazer uma busca pelo gesto fundamental do brasileiro. Investigamos o burguês, o operário, a dona de casa. Tomamos contato com o mau gosto da classe média, com o pinguim de geladeira que virou símbolo do tropicalismo. 

Então, “O Rei da Vela” caiu no nosso colo: numa vinda a São Paulo, achei esse livrinho enfiado na minha estante. Bem velho, acabado. Era a peça do Oswald de Andrade.

O escritor Luiz Carlos Maciel tinha mencionado a peça uma vez, mas eu nunca tinha lido. Quando abri, não acreditei no que estava vendo. Pensei: “Isso diz tudo que o Brasil precisa ouvir a respeito da gênese do homem brasileiro e muito mais”.

Zé Celso, à primeira vista, não achou muito bom. Mas eu passei a ler a peça sem parar, em todos os lugares aonde a gente fosse. E ele também se apaixonou. 

Decidimos montar. Eu queria interpretar o protagonista, Abelardo 1º: um usurário que emprestava dinheiro a juros, sabia que era filho da puta e dizia que o mundo era assim. Era uma figura grandiosa, meio Orson Welles, e eu era aquele menininho de 30 anos. Mas o Zé, que era muito louco, concordou que eu fizesse o personagem. 

E foi aí que eu trouxe para o Oficina e para a minha carreira algo que tinha sepultado no Rio de Janeiro: o teatro de revista de Walter Pinto, Oscarito, Grande Otelo. 

Aquele mundo com cascatas de gelo seco e vedetes importadas da França e da Polônia, que viviam fazendo topless. Um teatro que minha avó me levava para ver quando eu tinha 6 anos de idade porque não havia censura na época. 

Eu achava lindo, mas, quando me mudei para São Paulo e encontrei o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), fiquei completamente colonizado. Aquele mundo de Cacilda Becker, Cleyde Yáconis e Paulo Autran era muito mais sofisticado.

Eu era o carioca com a cabeça feita pela rádio Nacional, e em São Paulo todos estavam por dentro de Drummond, Manuel Bandeira. O teatro da minha infância passou a me parecer muito simplório e me esqueci dele.

“O Rei da Vela” fez voltarem todos os grandes cômicos da ribalta que sempre estiveram no meu sangue e eu havia soterrado. Apesar de ser uma peça cabeça, ela tem raiz popular. Dei ao Abelardo um jeito de falar e uma ginga igual à do teatro daqueles tempos.

Usei ali todo meu Stanislávski, todo meu Brecht e incorporei minhas raízes. Baixou tudo num terreiro, juntou num caldeirão e formou o Renato.

A estreia da peça, em 1967, teve uma reação de estranheza. Ninguém sabia muito o que dizer, porque aquilo não tinha nada a ver com o TBC. É uma peça politicamente violenta, mas, como foi escrita em 1933, a ditadura não tinha como proibir. Foi um susto. Oswald estava além do que as pessoas podiam dizer naquela época.

Zé Celso teve uma inspiração dos deuses na direção. Hélio Eichbauer fez na cenografia algo que ainda não existia aqui: o primeiro ato era baseado no circo; o segundo, na revista; o terceiro era ópera. A trilha sonora ia da marchinha a Villa-Lobos. Mesmo eu fazendo aquele papel era algo inesperado. 

Críticos como Sábato Magaldi e Décio de Almeida Prado logo entenderam que havia algo importante ali. E o resto da imprensa passou a escrever sobre a peça. Começou a se criar um mito e houve, a partir do “Rei da Vela”, uma tentativa de reformulação geral do teatro brasileiro. 

Mas, mesmo assim, eu continuei sempre ouvindo aquelas palavras do início da carreira: “Apesar de Renato Borghi não ter o físico para o papel de Abelardo, que deveria ser feito por um homem da dimensão de um Jardel Filho…” 


Renato Borghi, 81, ator, recebeu o prêmio Molière pela atuação em ‘O Rei da Vela’ em 1967 e o APCA pela montagem de 2017. Está em cartaz no Teatro do Sesi com ‘Molière’ até 29/7.

Depoimento a Walter Porto.

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