Movimento amplia de forma inédita o espaço do cinema negro no Brasil

Liderada por mulheres, tendência foi favorecida por um conjunto de iniciativas na última década

Lúcia Monteiro

O som do cabelo crespo ao ser penteado. Mãos escuras a ajeitar flores sobre um pequeno altar. A melodia aprendida com os antepassados. Faz pouco tempo que o espectador brasileiro começou a ver cenas como essas nas telas. Depois de décadas entre inexistência e invisibilidade, o cinema negro —em especial aquele feito por mulheres— finalmente conquista algum espaço no Brasil. 

Glenda Nicácio, Jéssica Queiroz, Larissa Fulana de Tal, Lilian Santiago, Renata Martins, Safira Moreira, Viviane Ferreira, Yasmin Thayná. Realizadoras negras têm marcado presença em grandes eventos, como a Mostra de Cinema de Tiradentes, o Festival de Brasília e a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. 

cena em que uma mulher negra se cobre de tinta branca
Cena do curta "Kbela" (2015), de Yasmin Thayná - Reprodução

Ainda que seus filmes continuem fora do circuito comercial, é nítida a existência de um movimento que amplia de modo inédito as possibilidades de reconhecimento da população negra nas telas —e longe dos estereótipos tradicionais que ligavam a pele escura à violência, ao tráfico de drogas e a posições subalternas.

A maior presença de atores, atrizes, roteiristas, diretores e diretoras negras não se deu por acaso. Um conjunto de iniciativas ligadas a políticas de ação afirmativa e à descentralização do ensino superior favoreceu esse movimento na última década. 

Uma delas foi a criação, em 2008, do curso de cinema e audiovisual na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, em Cachoeira (BA). Além de formar muitas das diretoras negras em atividade no Brasil, a cidade responde também pelo aparecimento de grupos de realização e programação, como o coletivo Tela Preta e o Cineclube Mário Gusmão. 

A ação desses grupos é fundamental. Eles atuam no combate a uma dificuldade histórica enfrentada por artistas negros (homens e mulheres): o esquecimento. 

O tema aparece em “Kbela” (2015), da fluminense Yasmin Thayná, em que uma mulher negra cobre rosto e corpo com tinta branca. É uma inversão da “black face” —prática em que brancos pintam o rosto de preto para interpretar negros, algo comum no teatro do século 19 e nos primeiros tempos do cinema.

A transformação de corpos negros em fantasmas também pode ser encarada como alegoria dos apagamentos a que foram submetidos nomes de negros da história do cinema. Por que as filmografias de Adélia Sampaio (1944), a primeira cineasta negra do Brasil, e mesmo de Zózimo Bulbul (1937-2013) circulam menos do que a de cineastas brancos que lhes são contemporâneos?

O fenômeno não é privilégio brasileiro. A história do cinema mundial tampouco deu o lugar merecido a figuras como o americano Oscar Micheaux (1884-1951, filho de escravo), os guineenses Flora Gomes (1949) e Sana Na N’Hada (1950) e o senegalês Djibril Diop Mambéty (1945-1998) —a quem o festival curitibano Olhar de Cinema dedicará, felizmente, uma retrospectiva em junho. 

Sarah Maldoror (1938), francesa nascida em Guadalupe, domínio ultramarino da França, também segue pouco conhecida. Seu curta-metragem “Monangambeee” (1968), realizado na Argélia no contexto dos conflitos anticoloniais, ganhou certa visibilidade recente pela celebração do cinquentenário de maio de 1968.

Em uma entrevista de 2015, Maldoror afirmou sua crença na transformação do cinema após as filmagens ligadas às brigas por independência na África: “Depois da luta anticolonial, filmar uma senzala não é mais filmar a senzala em si, mas captar a música das cadeias, criar uma sinfonia de correntes para representar a dor. É algo mais sublime e poético”. 

Numa sequência de “Monangambeee”, o preso conversa com um lagarto que passeia por sua cela e diz: “Também sou um animal preto e com fome”. Esse viés sublime e poético de Maldoror pode ser reconhecido em produções nacionais recentes, como “Peripatético” (2017), da paulista Jéssica Queiroz, “Cinzas” (2015), da baiana Larissa Fulana de Tal, e “O Dia de Jerusa” (2014), da também baiana Viviane Ferreira.

São filmes que traduzem a força necessária para enfrentar dores relacionadas ao racismo. É o que se nota no andar dificultoso da adolescente de “Peripatético”, que caminha de salto alto nas ruas da favela para ir a uma entrevista de emprego. Ou na importância que tem a professora Margarida na vida de Violeta, em “Café com Canela” (2017). 

Dirigido pela mineira Glenda Nicácio em parceria com Ary Rosa, o longa é um exemplar da produção de Cachoeira: é parcialmente ambientado no município (onde os diretores estudaram cinema) e contou com uma equipe técnica toda formada por moradores locais. 

É ali também que nasceu o festival Cachoeira Doc, que privilegia a produção negra e periférica e promoveu, inclusive, exibição do curta de Maldoror em 2017. 

A última notícia que se tem do evento, contudo, é que, por falta de recursos, a edição de 2018 não ocorrerá. Que não seja prenúncio de outro período de invisibilidade para a produção negra, após um breve lampejo. O Brasil precisa seguir esse ciclo no qual a existência do cinema negro não possa mais ser ignorada. 


Lúcia Monteiro, 40, é doutora em cinema pela Sorbonne Nouvelle - Paris 3 e pela USP.

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